segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Fernando Namora por Baptista Bastos


Na sua crónica no último número do Jornal do Fundão, BB recorda um escritor esquecido - Fernando Namora:

BREVE MEMÓRIA DE FERNANDO NAMORA

Vivo nesta zona há treze anos e desconheço muitas ruas que circundam aquela onde moro. Foi um motivo comezinho e doméstico que me levou ali, à Rua Fernando Namora, no último domingo. Precisava de um medicamento e a farmácia mais próxima situava-se na Rua Fernando Namora. Uma rua ampla, clara, enorme, prédios bem desenhados (curtidos, diriam os meus filhos), modernos, agradáveis e, certamente muito caros. Não há apartamentos para arrendar, descobri depois: apenas para vender. Sentei-me num murete; o dia, azul e nítido, parecia convidar-me a um leve descanso.

E Fernando Namora, o seu rosto fechado, o seu sorriso magoado, o seu ar melancólico
desfilaram num tropel de imagens. Foi um bom escritor. Não foi um homem feliz. «Falta-nos o rio triste do seu olhar», escreveu Agustina, num belo depoimento ao «Diário de Lisboa», quando Namora morreu. E, no entanto, o êxito literário nunca o largou. Ele, Ferreira de Castro e Urbano Tavares Rodrigues foram, durante bem duas décadas, os escritores portugueses mais conhecidos, admirados e, até, adulados. A notícia da próxima saída de um livro de Namora causava grande alvoroço. Ocasiões houve em que, antes de sair, a primeira edição de alguns dos seus livros já estavam esgotadas, tiragens de cinco e sete mil e quinhentos exemplares.

E há títulos de Namora que são importantes documentos literários da vida portuguesa. Lembro alguns: «Retalhos da Vida de um Médico», «Casa da Malta» (uma das reedições tem um longo e indispensável prefácio do autor, sobre as ideias do movimento neorealista); «O Trigo e o Joio», «O Homem Mascarado», ou «A Nave de Pedra» e «Diálogo em Setembro» - que marcaram, definitivamente, a literatura portuguesa contemporânea.

Na época, os nomes relevantes (além dos acima citados) eram Aquilino Ribeiro, Nemésio, Torga, José Régio, Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro (há semanas aqui relembrado, num belo artigo de Arnaldo Saraiva), Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Alves Redol, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, José Gomes Ferreira, Branquinho da Fonseca, Domingos Monteiro, Tomaz de Figueiredo, Eugénio de Andrade, Maria Judite de Carvalho, Joaquim Namorado, Armindo Rodrigues, Mário Dionísio, Alexandre O’Neill, mais, muitos mais outros. Uma literatura é uma cordilheira, com picos altos e outros menos altos. Mas é feita assim. Por artistas que, à sua maneira e com as singularidades próprias, forneceram o retrato moral da pátria, quando a pátria estava sequestrada. E é importante que isto se diga, para que isto se não esqueça. Ser escritor não era (não é) um mero desafio pessoal: será a convocação de todas as forças éticas e de todas as energias estéticas para a realização de um trabalho cuja matriz ideológica desempenha uma componente fundamental.

O êxito impressionante de Namora: edições de milhares e milhares de exemplares, traduções constantes de livros seus, ensaios, estudos, exegeses, teses sobre a sua obra, amiudadas vezes requisitado pela Imprensa a fim de depor sobre este e aquele assunto; entrevistas, comentários - enfim, essa glória que o envolveu não deixou de causar invejas e ressentimentos. A vida literária portuguesa não é diferente da vida literária de outros países. E Namora, cuja generosidade e camaradagem eram lendárias, sentia, profundamente, a circunstância. No entanto, ele jamais deixou de ser amável e cortês, até efusivo com muitos daqueles que o atropelavam nas tertúlias dos cafés.

Pessoalmente, devo-lhe favores e gentilezas, estímulos e impulsos. Foi ele que se prestou, sem eu lho pedir, a falar com o seu editor de então, o Lyon de Castro, da Europa-América, sobre um livro meu, «As Palavras dos Outros», cuja primeira edição (vai na sétima) foi lançada pela pertinácia da sua bela camaradagem. Ele sabia muito bem das aleivosias, dos destratos de que era alvo. Nem uma vez, nem uma escassa e módica vez se me queixou. Encontrávamo-nos nos cafés; telefonávamo-nos; ia a sua casa, na Infante Santo, onde o entrevistei por duas ou três vezes.

A dor que o não abandonava acentuou-se com a publicação de um folheto, assinado por Luiz Pacheco, que o acusava de plagiador de uma obra de Vergílio Ferreira. A infâmia fora organizada por este, com a cumplicidade de Serafim Ferreira. O Pacheco apenas assinou. E é fácil de comprovar a cabala. O panfleto põe, lado a lado, textos do Ferreira (esqueci-me do título do livro) e do «Domingo à Tarde», do Namora. Evidentemente, não saía do bestunto do Pacheco a ideia da comparação dos textos, até porque isso teria exigido um trabalho de investigação para o qual o Pacheco não estava notoriamente vocacionado. Acontece que o «Domingo à Tarde» fora editado em Barcelona, antes da publicação do romance do Ferreira. É uma história miserável, que não abona nenhum dos intervenientes, e expõe a fragilidade de Fernando Namora, que nunca mais se ressarciu do choque.

Independentemente do facto em si, o Namora não possuía o arcaboiço de um Eça, provadamente plagiador de Flaubert e de Zola, e que passeou pelas acusações (estas efectivamente provadas) com a displicência de quem se está marimbando para a gentalha. O Fernando Namora era uma alma de porcelana no corpo de um camponês. O martírio por que passou é indescritível. Mesmo assim, creio que nunca deixou de falar com o Vergílio Ferreira, embora fosse conhecedor da marosca e dos seus intérpretes. Com uma hipocrisia atroz, o Ferreira, num dos seus «diários» assinala, com duvidosa surpresa, que Namora não o teria cumprimentado, numa determinada ocasião. Obviamente, este não se lançaria, amigavelmente, nos braços do Ferreira, mas era incapaz de lhe negar a mão, caso o outro lha estendesse. Havia uma grandeza em Fernando Namora que muitos daqueles que o acusavam e criticavam estavam longe de possuir.

O tempo vai dar tempo ao tempo para que muita coisa se recomponha. E a obra de Fernando Namora é uma, importante, a recuperar e a reabilitar. Porque é infinitamente melhor, mais original e mais importante do que a esmagadora maioria do que por aí se edita.

Assim seja.

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