quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ainda Barack Obama


Artigo de Jorge Almeida Fernandes no jornal Público de hoje:

Barack Obama - O Presidente global

1 - Os americanos elegeram um Presidente que foi previamente plebiscitado em todo o mundo. Chama-se Barack Hussein Obama. É negro, ou melhor, descendente de brancos e negros, filho de um imigrante vindo do Quénia, a personificação do "sonho americano". Para o mundo, a sua eleição simboliza a morte da América racista e assinala o fim da América arrogante. Para Thomas Friedman, colunista do jornal The New York Times, a sua eleição marca o fim de 147 anos de guerra civil.

A sua irresistível ascensão pode ser narrada como um conto de fadas. Passado o sonho, seguem-se a cruel prova da realidade e a previsível era das decepções, na América e fora dela.

Antes de mais, é útil interrogar o fenómeno, pela sua dimensão universal e pela sua dinâmica americana.

Quanto aos sarilhos, Obama já preveniu no discurso de vitória: "No momento em que celebramos esta noite, sabemos que os desafios que amanhã afrontaremos serão os maiores da nossa vida - duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira num século."


2 - Desde que os EUA são uma superpotência, as suas eleições são seguidas com interesse, até paixão, porque tocam os interesses de todos ou se revestem de um valor simbólico, como aconteceu com John Kennedy em 1960. No entanto, desta vez é diferente. Graças à crescente interdependência e às novas comunicações, europeus, asiáticos ou africanos envolveram-se na contenda e criaram as mais diversas expectativas em relação ao "seu" novo Presidente. Há a percepção de que pode mudar o mundo.

O poderio ou declínio da América, a arrogância imperial ou uma viragem internacionalista tocam todas as geografias. A popularidade de Obama é o reverso da impopularidade de Bush, que fez dos EUA a potência mais detestada do mundo.

Desde há meses que a mobilização das opiniões públicas levou à criação da figura de "eleição global". A vitória de Obama surge como uma "injecção de soft power", disse um analista. "Pela primeira vez os americanos têm uma rara oportunidade - a de eleger Presidente um homem cuja visão e cuja liderança são consideradas justas não só por muitos americanos como pela maioria do mundo", escreveu o indiano Muqtedar Khan, teólogo islâmico e colaborador da Brookings Institution. "A epidemia mundial de antiamericanismo pode ser instantaneamente deflacionada e o mundo mudará a sua percepção da América."

Os 27 da UE anteciparam-se à eleição enviando uma proposta de revisão das relações atlânticas. Os árabes esperam a resolução diplomática da crise do nuclear iraniano e uma saída airosa do Iraque. Muitos estrategos israelitas apostaram em Obama por o considerarem o mais capaz de travar o declínio da influência americana no mundo, a ameaça que mais temem. Todos sabem que o mundo mudou. E também mudou a América.


3 - A que se deve a ascensão de Obama? Trivialmente pode dizer-se: os americanos (tal como o mundo) estavam cansados de George W. Bush. É um fenómeno longo: o impasse militar e a crise moral derivados da invasão do Iraque, o mal-estar social, o declínio do seu estatuto internacional, a crise financeira que culminou na explosão de Wall Street em 29 de Setembro e pôs em causa o modelo económico republicano são alguns dos passos mais evidentes. Entretanto, a "vaga conservadora" e a "grande aliança republicana" que dominavam desde Ronald Reagan já estavam esgotadas. E a América mudava sociologicamente, com a emergência de uma nova classe média, que terá sido um importante actor nestas eleições.

Obama foi o intérprete do mal-estar e das novidades sociais. Numa situação de crise profunda, os eleitores não escolhem um programa detalhado de governo: procuram um líder. Ele deu-lhes um desígnio. Por isso funcionaram o discurso da "mudança" e o apelo ao fim da "guerra cultural" que divide e crispa as "duas Américas" desde a guerra do Vietname.

Para uns, é o Presidente mais à esquerda da história dos EUA, o "absolutamente azul", o "social-democrata" que ineditamente forçou as portas da Casa Branca. Na recta final da campanha, Obama voltou ao tema da reconciliação e da mobilização da América, que lançou na convenção democrata de 2004, ainda não era senador federal. Quer manifestamente o apoio de republicanos. John McCain, no seu notável discurso da madrugada de ontem, deu-lhe um forte sinal de resposta.

Obama revolucionou as regras do jogo e está em posição de força perante o seu partido e os congressistas. Escrevia ontem o diário on-line Politico: "Obama é o Google da política: tem uma perícia tecnológica e uma audiência que os seus concorrentes políticos não podem desafiar."

Será, antes de mais, o Presidente dos EUA, mas quase todo o mundo indicou que é a América dele aquela que prefere, como aliada ou como rival.

Barack Hussein Obama é o primeiro Presidente negro dos EUA. Por isso se pode repetir, em registo de celebração, e já não de tragédia, o título do Monde no 11 de Setembro: "[Hoje], somos todos americanos." Amanhã se verá.

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