quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

"Corrupção em tempo de crise"


Artigo de Helena Roseta no Diário de Notícias de hoje:

Em Julho do ano passado entrou em vigor o novo Código dos Contratos Públicos (CCP), que transpôs para Portugal directivas de 2004. O Código levou anos a ser preparado e foi amplamente debatido. É um texto complexo com regras comunitárias e regras específicas para o contexto nacional, entre as quais os limites abaixo dos quais se pode adjudicar encomenda pública por ajuste directo. Genericamente, esses limites são de 150.000€ para obras públicas e 75.000€ para serviços. Todas as entidades públicas estão obrigadas a cumpri-los, embora com algumas excepções para determinado tipo de serviços e para certas entidades, nomeadamente o Banco de Portugal e entidades públicas ou privadas que visem satisfazer “necessidades de interesse geral”, que podem fazer ajustes directos até limites mais elevados. Para obras acima de 5.150.000€, é obrigatório publicar o anúncio do concurso no Jornal Oficial da União Europeia.


Em nome da crise, o Governo prepara-se para alterar o CCP com medidas excepcionais que permitam, em 2009 e 2010, que todas as entidades públicas, incluindo autarquias e governos regionais, possam contratar serviços e obras públicas, sem concurso e por ajuste directo, por valores que ultrapassam em muito os limites até agora definidos na lei portuguesa. Em Dezembro passado já foi aprovada a primeira alteração, ainda não publicada, elevando os limites do ajuste directo para 206.000€ no caso dos serviços e 5.150.000€ no caso das obras públicas. Além disso, foram encurtados os prazos dos procedimentos concursais, que podem reduzir-se a 36 dias. Estas alterações só se aplicam a alguns serviços e obras (escolas, energia sustentável, banda larga, apoio à exportação e às PME e apoio ao emprego).

Caso este regime excepcional seja extensível às autarquias e governos regionais, vão desaparecer na prática os concursos públicos de dimensão nacional. Todas as entidades públicas poderão passar a contratar por ajuste directo serviços e obras públicas até aos montantes máximos a partir dos quais é sempre obrigatório concurso internacional, com anúncio no Jornal Oficial da UE. Ou seja, passou-se do oito para o oitenta, ainda por cima no ano de todas as eleições.

Vale a pena recordar a legislação de 1999, do tempo de Sousa Franco e João Cravinho, que já tinha procurado pôr ordem na encomenda pública, nomeadamente limitando os “trabalhos a mais” que levam sistematicamente à derrapagem de custos. Os limites gerais abaixo dos quais se podia então fazer ajuste directo de serviços eram de 5.000€, sendo obrigatório o concurso público acima de 125.000€. Entre os dois valores era obrigatória uma consulta ao mercado. Para as obras públicas, os limites eram os mesmos (5.000€ e 125.000€), embora isso tivesse resultado da intervenção da Assembleia, que reduziu a metade o valor inicial proposto pelo governo.

Em suma: dos 5.000€ para ajuste directo fixados em 1999 passou-se em 2008 para 75.000€ (serviços) e 150.000€ (obras públicas). E pretende-se passar agora, a pretexto da crise, para 206.000€ e 5.150.000€, respectivamente. O salto é excessivo e perigoso. O nosso sector da construção civil e obras públicas tem uma maioria de pequenas entidades que têm direito à concorrência leal no acesso à encomenda pública. Mais de metade das obras camarárias são inferiores a 5 milhões de euros. Este regime, a ser aprovado, vai significar uma brutal machadada na concorrência. E pode ser impugnado pela União Europeia.

Mas há pior. É no triângulo partidos-autarquias-obras públicas que se geram as maiores oportunidades de clientelismo, financiamento partidário ilegal e corrupção. Com estas regras, escancara-se à porta ao nepotismo e à opacidade – tudo o que pelo menos desde 1999 se tem procurado combater com os novos regimes legais. Sou totalmente favorável à diminuição de prazos, desde que não se ponha em causa a transparência, que o actual portal dos contratos públicos, base.gov.pt, tal como está, não permite garantir. Mas apelo ao governo e a todos os partidos para cortarem caminho: distribuir a encomenda pública pelos amigos e conhecidos é inaceitável, seja em nome do que for. A melhor forma de combater a crise e injectar dinheiro na economia é pagar a tempo e horas, regra que o Estado e as câmaras estão muito longe de cumprir em Portugal.

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