segunda-feira, 18 de maio de 2009

"Alguém sabe onde fica a porta?"

A propósito da decisão do governo em reduzir a a quota do número de imigrantes que podem entrar legalmente em Portugal, transcrevemos o artigo da jornalista São José Almeida no jornal Público do dia 16/05:

"Mas afinal onde é que fica a porta que eles querem fechar aos imigrantes?", comentava um dia destes um conhecido meu, já na fase da conversa em que o absurdo do tema impõe a ironia. Mas aquilo que é uma aparente graçola para provocar quem verbaliza uma posição indefensável no fundo é a síntese perfeita do que há a dizer aos demagogos que fazem política cavalgando na xenofobia, no medo do outro, no pavor do diferente.

É que o mundo pode até ter fronteiras, mas estas em nada impedem nem nunca impediram as migrações. O que não há é portas que possam ser fechadas aos naturais de outros países, que nos procuram para viver com um pouco mais de dignidade e bem-estar. E que, ao fazê-lo, desempenham um importante papel social e económico que está vazio, à sua espera, e cumprem uma função no desenvolvimento.

A mais recente onda de disparates xenófobos em Portugal foi provocada, nada mais, nada menos, do que por um ministro, portanto uma figura pública que tem responsabilidades acrescidas. Vieira da Silva decidiu largar a bomba depois de fazer uma constatação banal. "É razoável aceitar que, face ao abrandamento da actividade económica, haja também um abrandamento dos fluxos migratórios", disse, para justificar que Portugal baixe a quota do número de imigrantes que podem entrar legalmente e que tem sido usada para ajudar a enquadrar muitos ilegais. Uma redução, aliás, drástica, já que dos 8600 lugares previstos em 2008 se passou esta semana para 3800 em 2009.

Perante o inusitado que ainda pode parecer ver o Governo do PS a defender a redução de entrada de imigrantes - afinal a lei em vigor, que mantém as quotas introduzidas pelo Governo de Durão Barroso e Paulo Portas, foi aprovada pelo actual executivo -, houve logo socialistas que a criticaram: Celeste Correia, Paulo Pedroso e Vítor Ramalho. Até António Vitorino surpreendeu o país ao manifestar-se contra a medida anunciada pelo Governo do seu partido, ele que foi o comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos que liderou o processo de adopção da actual política restritiva à imigração na União Europeia. E, claro, foi imediato o apoio entusiástico de Paulo Portas, que até descobriu que o PS governa bem quando cumpre o programa do CDS.

O que é mais extraordinário nesta discussão não é sequer a demagogia de Vieira da Silva, ao usar uma verdade óbvia para justificar uma medida restritiva, de exclusão de estrangeiros. O que é mais extraordinário é que Vieira da Silva pense que alguém acredita que ele não sabe exactamente como é xenófoba a sua posição e ao mesmo tempo absolutamente inútil. Basta olhar para a história recente e ver como a esmagadora maioria dos imigrantes em Portugal entrou de forma ilegal e depois de cá estar foi sendo legalizada, sempre dependendo da autorização e das condições impostas pelos sucessivos governos. Por isso, diminuir a quota nada impede, a não ser a legalização de quem continua a entrar ilegalmente.

Em vez de anunciar medidas com o ar de quem acha que o mundo começou quando ele nasceu, ou melhor que o mundo começou quando ele entrou no Governo, Vieira da Silva devia tratar de explicar e de agir em conformidade com a realidade existente. E isso implica admitir que é verdade que a imigração diminuiu em Portugal, porque a oferta de emprego diminuiu. Mas há ainda imensos imigrantes ilegais que é preciso trazer para o sistema, para que, além de contribuírem para a produção do PIB, passem a pagar impostos e segurança social. Direitos e deveres de cidadania a que se devia juntar, aliás, o de voto.

Assim como era importante que o ministro assumisse que se, por exemplo, a imigração de Leste reemigrou para melhores mercados de trabalho, o que é também facto é que se estima que permanecem em Portugal cerca de 200 mil imigrantes clandestinos, apesar de estarem já legalizados quase 500 mil (eram 426.122 em 2007).

É que não só salta aos olhos do cidadão comum que os imigrantes cumprem uma função e são necessários à sociedade portuguesa como não é preciso ter ido muito longe nos estudos, nem ter entrado na universidade para saber que as migrações são tão velhas como o mundo. Até porque qualquer aluno de História no secundário ouve falar de processos históricos como as Invasões Bárbaras da Europa, que selaram a queda do Império Romano do Ocidente. Como estudaram o Império Árabe na Península Ibérica. Mesmo que faltassem muito às aulas ouviram certamente falar da escravatura. E, se estiveram com atenção, perceberam que a mão-de-obra escrava existiu porque foi imprescindível ao desenvolvimento do capitalismo.

Provavelmente até perceberam que os Estados Unidos da América, o Brasil e os países da América Latina em geral foram construídos pela mistura dos povos indígenas com os escravos de África e também com imigrantes da Europa. Nos EUA sobretudo alemães, apesar da elite governante e da língua oficial ser a inglesa. E de certeza que sabem que o Brasil é um pais colonizado por Portugal. E estudaram as grandes migrações para o continente americano no final do século XIX e início do século XX, resultantes da crise económica na Europa. Quem não tem na história da sua família um parente que foi emigrado para o Brasil e que na maior parte dos casos não voltou? Aliás, a responsabilidade histórica de Portugal nas migrações e nas miscigenações étnicas e culturais devia impedir que aceitasse adoptar quotas.

Tudo movimentações de massa humana dentro e entre continentes que mais não são que movimentos migratórios. Migrações que são velhas como o mundo, repito. Até porque, há cerca de 160 mil anos, veio de África para a Europa esse ser chamado homo sapiens sapiens, pai de todos nós. E, que se saiba, também em nenhuma destas movimentações de massa humana havia portas para fechar.

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