sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Cultura portuguesa está de luto


Manuel Cintra Ferreira era "uma autêntica enciclopédia da história do cinema", que amava esta arte acima de todas as outras coisas e que tinha uma grande preocupação pedagógica e de contextualização histórica, quando escrevia sobre os filmes.

Estes são os traços fundamentais da biografia profissional de Manuel Cintra Ferreira, que morreu ontem em Lisboa, aos 68 anos, vítima de um tumor cerebral.

Era o mais antigo programador da Cinemateca Portuguesa, trabalho que acumulava com o de crítico de cinema no semanário Expresso. Integrou também a equipa inicial de críticos do PÚBLICO, em 1990, e foi programador de cinema na SIC.

Há uma história que Pedro Mexia, ex-subdirector da Cinemateca, ouviu contar acerca de Manuel Cintra Ferreira: a de que ele se teria casado, mas ter-se-ia separado logo que descobriu que a companheira não gostava dos filmes de John Ford. "Não sei se é verdade", nota, mas acrescenta que, tratando-se de Cintra Ferreira e de John Ford, podemos sempre adaptar aqui a famosa tese do mestre do western: quando a lenda substitui a realidade, é a lenda que conta.

O cinema americano clássico era, de resto, o mais apreciado por Cintra Ferreira. "Na Cinemateca, quando distribuíamos pelos diferentes programadores a tarefa de escrever para as Folhas que acompanhavam as sessões, sempre que surgia um filme americano da época clássica ou mesmo pré-clássica, o Manuel Cintra Ferreira dizia logo: "Esse é meu"", recorda Mexia.

Jorge Leitão Ramos, companheiro de crítica no Expresso, e Manuel Fonseca, que, para além de no semanário e na Cinemateca, com ele trabalhou também na SIC, quando era director de programas do canal, confirmam a ideia de que Cintra Ferreira tinha "uma memória prodigiosa". "Ele tinha a história do cinema na cabeça", realça Leitão Ramos.

Luís Miguel Oliveira, crítico do PÚBLICO, assinala também a sua "curiosidade insaciável" por tudo o que dizia respeito ao cinema. "Ele gostava de gostar e de se entusiasmar com os filmes que via."

António Loja Neves diz que se tratava de "um sábio do cinema", arte que ele conhecia e amava de uma forma muito particular, tendo uma grande preocupação de comunicar esse prazer aos seus leitores. Foi assim que, com essa preocupação pedagógica e de contextualização histórica, formou várias gerações de cinéfilos, acrescenta este jornalista e também crítico de cinema do Expresso.

"Ao contrário de muitos críticos que agora entram na sala de cinema com uma "bola preta" no bolso, Cintra Ferreira ia ver um filme sempre com uma grande abertura de espírito, e com "cinco estrelas" disponíveis", diz Jorge Leitão Ramos, salientando ser essa uma atitude que cada vez mais rareia nos nossos dias.

Manuel Cintra Ferreira nasceu em Lagos, em 1942, e mudou-se ainda em criança para Lisboa, onde fez o liceu. Com formação audodidacta, começou depois a trabalhar na rádio, na Emissora Nacional, onde afirmou o seu interesse especial pelo cinema, que haveria de o levar depois à crítica e aos jornais. Manuel Fonseca e Pedro Mexia destacam também a sua generosidade e afabilidade. "É talvez a única pessoa do mundo do cinema de quem não se ouve ninguém dizer mal", diz o escritor.

A dedicação de Cintra Ferreira ao cinema e a esta instituição ficou assinalada, este ano, com a doação que decidiu fazer de duas cópias novas de dois clássicos de que ele gostava particularmente, e que faltavam na Colecção da Cinemateca: "O Ladrão de Bagdad" (1940), de Michael Powell, Ludwig Berger e Tim Whelan; e "A Desaparecida" (1956), de John Ford.

A instituição da Rua Barata Salgueiro registou e agradeceu o gesto, programando, em Outubro, um ciclo a que chamou Presentes de Manuel Cintra Ferreira, que, a par das duas obras citadas, exibiu uma selecção de outros filmes da vida do crítico, de autores como Budd Boetticher, Totó, Raoul Walsh e Jacques Tourneur.

Sérgio C. Andrade

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