segunda-feira, 11 de junho de 2012

"SOBRE A "PACIÊNCIA" DO BOM POVO PORTUGUÊS"


Eu já vejo com muitas reservas esta obsessão dos dias de hoje de atribuir estados de alma a toda a gente para explicar tudo e mais alguma coisa, e por isso sou avesso, por maioria de razão, a embarcar na ideia que o mesmo se possa fazer aos povos. Isso a propósito da "paciência" do povo português celebrada pelo primeiro-ministro como virtude ímpar numa Europa turbulenta.

Claro que se podem dizer muitas coisas sobre o "povo português": que está "zangado" com a crise, que está "furioso" com os políticos, que está "deprimido" com o empobrecimento forçado, que está "descrente" da democracia, que está "prostrado" pela inacção, que tem uma infinita "paciência". Há, no entanto, várias coisas que ninguém tem coragem de dizer e o problema dos excessos de psicologia impressionista começam aqui. Ninguém tem a coragem de dizer que o povo português está "contente" com o "ajustamento", que fica "feliz" porque passou a ter, como lhe dizem os governantes, que viver com os seus parcos recursos, e não pode viver mais do crédito (um parêntesis para dizer que um dos absurdos da actual situação que parece escapar a muitos é que todo este "ajustamento" se está a fazer "para o país voltar aos mercados", ou seja, para pedir mais dinheiro emprestado...), que está "consciente" de que o futuro do seu país é risonho após o termo desta "revolução dos costumes", que "compreende" que tem que sofrer para depois renascer como a Fénix.

Em vez da psicologia e dos estados de alma, prefiro a política. É por isso que a frase da "paciência" tem um duplo significado político: é um desejo, de que os portugueses se portem bem; e é uma ideia sobre o "estado" em que estão e também sobre o que são. É uma ideia sobre os portugueses. A primeira coisa é um desejo, que todos podem ter; a segunda, é uma ilusória ideia de que existe uma qualquer virtude essencial nos portugueses que consiste em "comerem e calarem". Ora isto é uma asneira monumental sob todos os pontos de vista, seja o do puro bom senso, seja histórico, seja sociológico, seja até, admirem-se, psicológico e psiquiátrico. Masoquistas, só às vezes e é pelo prazer, não é pelo chicote.

A comparação que fez D. Januário Torgal entre Passos e Salazar levou ao paroxismo a interpretação da frase da "paciência". Ora, se entendida como sendo uma comparação entre Passos Coelho e Salazar, como pessoas e políticos, não tem nenhuma razão de ser. Passos é um político democrático, a quem de certeza são completamente alheias as ideias conservadoras e antidemocráticas de Salazar e a quem não move qualquer impulso autoritário. Pode ser indiferente, como muitas pessoas da sua geração, perante os valores da liberdade que receberam já adquiridos, e que sempre conheceram como naturais, mas isso não o faz um ditador em potência.

O problema é outro, é que muitas ideias do nosso salazarismo de background impregnam muito mais do que se pensa o discurso público vulgar, aquele que não é muito elaborado e se desenvolve por aquilo que pensam ser evidências, sobre as quais nunca pensaram. Passos Coelho não é um caso especial, mas como é primeiro-ministro fica mais exposto. É o problema, também geracional, de uma formação política muito superficial, assente pouco mais do que leituras de jornais e em discursos estandardizados sobre Portugal e os portugueses. Esses discursos repetem, sem autoconsciência, como lugares-comuns, aquilo que no salazarismo era um pensamento contra, um ataque ao liberalismo político em nome de uma organicidade substancial do "povo português", que correspondia à visão rural e paroquial das virtudes dos portugueses.
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O artigo de José Pacheco Pereira no Público de dia 9. Para ler na íntegra aqui.

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