sexta-feira, 12 de outubro de 2012

José António Ribeiro dos Santos

Recordo-me como se tivesse sido ontem. Acabávamos de almoçar pacatamente na “sala amarela” de nossa casa e o meu irmão Miguel, na altura recém-licenciado e jovem assistente no então chamado ISCEF (“as Económicas”) chegou e disse, consternado: “Houve uma grande confusão na faculdade, a polícia andou aos tiros, mataram um tipo, parece que há também feridos.”

É preciso recuar a Outubro de 1972 para perceber o transcendente significado de uma notícia destas. Marcelo Caetano “piscava à esquerda e virava à direita”, como se ironizava no milieu e ele próprio, se bem me recordo, comentou numa Conversa em Família na televisão. Que curioso e educativo seria produzir uma série em vídeo com essas conversas e mostrá-las aos nossos estudantes universitários, lembrando-lhes, por exemplo, que aquele ilustre administrativista dizia a quem o quisesse ouvir que o curso de Direito não era para Senhoras (é claro, ele diria assim, com maiúscula). Julgo que o disse em pleno exame oral de Direito Administrativo à minha irmã Leonor, se a memória me não trai. Hoje, a população discente é maioritariamente feminina e as carreiras jurídicas foram todas abertas às mulheres, há uns escassos 20 anos, a idade das minhas alunas de agora, que olham para mim como se eu tivesse aterrado de um qualquer Marte ou como se eu fosse contemporânea da primeira República (supondo que sabem o que isso seja...) quando eu lhes conto que iniciei o curso com todas essas carreiras vedadas por lei ao meu sexo. A distância estética do cenário e da pose do então chefe de Governo no ecrã em relação aos nosso “parâmetros” de agora — o que, bem conheço o risco, permite revivalismos saudosistas caros a alguns meninos e meninas da nossa praça política e jornalística... — pode provocar um “inconveniente” (porque desfocante!) efeito de Verfremdung, mas também proporcionará, porventura, uma noção tão realista quanto possível da vertigem que foi a mudança de tantas coisas em metade das nossas vidas.

Falo, é claro, da minha geração: eu nasci em 1951, em plena guerra fria, sete anos antes da campanha de Humberto Delgado, dez anos antes da eclosão da guerra em Angola e... muito particularmente caro ao meu coração e à minha inteligência: no ano de publicação do fabuloso Minima Moralia, de Theodor Adorno, que um dia será primorosamente traduzido em português por uma equipa interdisciplinar que eu ajudarei a formar e será, depois, parte obrigatória do curso de Filosofia que ninguém escapará a fazer, sob pena de terríveis sanções que ainda tenho de imaginar. Aqui têm a minha costela “estalinista”... (não no meu amor por Adorno, obviamente, mas na imposição coactiva da sua leitura!!!).

Alguns meses depois, o Congresso da Oposição democrática terminaria em Aveiro com uma carga sangrenta sobre os romeiros à campa de Mário Sacramento. Assim que se juntou um grupo razoável de pessoas e a inevitável palavra de ordem “Não à guerra colonial!” começou a ser entoada, a polícia de choque abateu-se selvaticamente sobre tudo o que mexia. Lembro-me do rosto hermético e estranho dos homenzinhos verdes que nos atacavam, assim sem mais nem para quê, lembro-me de corridas desordenadas e de gritos de medo e de dor física, na atrapalhação súbita da violência “desproporcionada”, de ter encontrado abrigo precário num vão de garagem, de ver, um pouco mais tarde, manchas de sangue fresco ao longo da Avenida. Desde a véspera, as “forças da desordem” tinham cercado a cidade, por ordem de Marcelo Caetano, cuja “Primavera” ali acabava de ser, definitivamente, congelada. Não sabíamos, é claro, que por tão pouco tempo. Ouvi dizer — nunca consegui confirmar ou infirmar este rumor — que um cão-polícia tinha mordido a barriga de um chefe local. Foi a única coisa que me consolou (hoje, até sou capaz ao ver a selvajaria de que eram capazes um Estado e um Governo só porque se sentiam ameaçados na sua sobrevivência. Apesar da euforia que dá a vitória sobre nós próprias, sobre o medo físico, instintivo, humano, a minha sensação no regresso a Lisboa era um misto de enorme cansaço — ninguém dormira, na véspera — e de uma determinação íntima muito forte de que tudo faria, nas minhas modestas possibilidades, para que coisas daquelas não voltassem a acontecer. Ou para que, pelo menos, eu me não sentisse culpada por elas, por omissão.

José António Ribeiro Santos era um daqueles miúdos — sim, éramos meninos, aos 18, 19 anos — corajosos e persistentes que nos “doutrinavam” desde que entrávamos na Faculdade. A minha primeira recordação dele é a sua figura pequena, mas que se tornava visível pela determinação que transparecia na sua voz, cujo timbre ainda hoje me é familiar. A última, uns quatro anos mais tarde, é a de uma conversa amena no Anfiteatro 4 (então a sala do 4º ano) a propósito dos exames de Direito da Família. Comentávamos a ousadia do “nosso” assistente, Luís Lingnau da Silveira — uma das perdas da minha Faculdade que muito lamento, hoje um dos ganhos da Procuradoria Geral da República, o que me alegra —, que nos ensinava de uma forma despreconceituosa esse ramo do Direito em que talvez mais do que em qualquer outro se plasmava a concepção da sociedade do Estado Novo: o Direito da Família. O catedrático que detinha a titularidade da cadeira, o Prof. Gomes da Silva, era um finíssimo jurista e um homem de uma inteligência fulgurante, mas (mas?) profundamente conservador. O ambiente de então na Faculdade é totalmente inimaginável para os actuais estudantes: uns senhores com ar facineroso e abrutalhado, ex-comandos, controlavam todos os nossos movimentos e permitiam-se dizer piadas ordinárias às alunas... eram os “vigilantes”, um dos últimos delírios do Estado Novo em matéria de política universitária. Era, obviamente, uma medida de desespero. Mas isso só se tornou óbvio depois, como de costume. Quem fará esta História, com rigor, um dia? Fernando Rosas?

Quando percebi que a notícia que caíra como uma bomba na sala de casa de meus pais se referia, ainda para mais, a alguém que conhecia de perto e estimava, com quem conversara 24? 48? horas antes — Ribeiro Santos era um homem muito inteligente e arguto, a sua conversação era extraordinariamente agradável —, à raiva humana e política juntou-se o sentimento de perda pessoal e irreparável. A nossa conversa ficaria, para sempre, inacabada. E são estes sentimentos, sabemo-lo hoje porventura melhor do que sabíamos então, que se tornam decisivos na nossa ética de vida, nas nossas relações pessoais, nas opções que faremos mais tarde, ainda que por vezes sem essa consciência ser nítida ou actual.

O funeral foi uma manifestação de dor e de fúria que deve ter afligido o Governo mais do que qualquer outra coisa naquele ano. Os estudantes insistiram em levar o esquife aos ombros e enfrentaram corajosamente a polícia, que se escudava em absurdos regulamentos e se apresentou em quantidade, mas parecia ter alguma ordem de contenção — o que é natural, dado que a situação era explosiva. Recordo a figura de Urbano Tavares Rodrigues, ao cimo da calçada que haveria de ser nomeada em homenagem ao estudante-mártir, comovido com a coragem dos mais novos (recordei-lho, no outro dia, na apresentação do “Che” de Manuel Alegre). Recordo a figura belíssima e trágica de Maria Alice Manta, vestida de negro, recurvada como um desenho heróico de Ribeiro Pavia ou de Cipriano Dourado, a gritar, em conjunto com muitas outras pessoas, um mar de gente, junto à campa: “Assassinos, assassinos, assassinos!” São imagens e sons como estes que ficam connosco para o resto das nossas vidas.

Quando cantámos o Hino Nacional, olhei para a cara de alguns polícias. Pareceu-me ver a sua perplexidade latente — “Pode bater-se em alguém a cantar a Portuguesa?” —, mas deve ter sido imaginação minha. Um pouco mais tarde, na debandada algo confusa do regresso, dei guarida no meu automóvel a Luís Lingnau da Silveira, o único dos meus professores de então que me recordo de ver no cemitério.

Soube depois que um dos feridos do ISCEF fora o meu colega mais jovem José Lamego, hoje secretário de Estado da Cooperação. Compreendo e admiro a sua persistência em reiterar que nunca apertará a mão a um “pide”. Afinal, a dignidade humana também se mede por estas coisas.

Entretanto, passou muito tempo, desde tudo isto e desde o dia — 2 ou 3 de Maio de 1974, se não estou em erro — em que Adelino da Palma Carlos, de lágrimas nos olhos, me dizia, a mim e aos meus colegas que integrámos o primeiro Conselho Directivo pós-revolucionário na Faculdade de Direito: “Vocês não sabem o que é ter a liberdade e perdê-la; mas eu sei. Nunca se esqueçam disto que vos estou a dizer!” Eu nunca me esqueci. Tenho a certeza de que os meus colegas de então, estejam onde estiverem, também não. 

O que eu gostaria que os jovens de hoje compreendessem é que a liberdade e a democracia que hoje tomam por natural, óbvia e garantida foi conquistada também com sacrifícios “absurdos” como o da jovem vida de Ribeiro Santos. Honra à sua memória. [1]

[1] Peço emprestado o título, com a devida vénia e amizade, ao poeta António Magalhães, na elegia dedicada à memória de João de Freitas Branco, publicado em “A Flauta na Falange”.

Teresa Pizarro Beleza 

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