terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"A IMPLOSÃO ANUNCIADA"

Houve tempos em que os intelectuais marcavam a vida do país. Um manifesto, um ensaio, um romance, um poema, um simples artigo podiam abalar o marasmo estabelecido e sublevar as consciências. Por isso, de vez em quando, filósofos, romancistas, professores, jornalistas e poetas eram presos. Não só na vigência do Estado Novo. Antes do 5 de outubro, agora outra vez banido, já Guerra Junqueiro tinha acabado com a Monarquia.

Durante a Ditadura, livros, poemas e até, canções apesar da censura e da repressão, foram subvertendo o regime antes de ele ser derrubado. Mas parece que a Democracia tirou espaço e voz aos intelectuais. Ou porque desistiram, ou porque não intervêm, ou porque foram abafados pelo frenesim da notícia e do comentário, ou ainda porque não há lugar para eles nos aparelhos políticos e outros que dominam a vida pública.

Mas eis que algo de novo aconteceu. Dois textos revolucionários, que são, em si mesmos, uma sublevação. Não foram escritos por nenhum político, muito menos por nenhum economista, mas por um filósofo e um poeta.

José Gil, “ O roubo do presente”, artigo publicado numa revista; Nuno Júdice, e o seu romance “Implosão”, editado pela D. Quixote. Não sei o que vai acontecer, sei que nada ficará na mesma depois destes dois textos.

Eles já abateram moralmente este governo e o contexto em que subjaz. Vejamos José Gil: “ Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural e económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida”. Resultado:” o português foi expulso do seu próprio espaço, continuando, paradoxalmente a ocupá-lo”. “Este governo transforma-nos em espantalhos…”.

A “Implosão”, de Nuno Júdice, é o libelo mais contundente contra o embuste em que se tornou a Europa e a crise que está a matar Portugal. Um novo Finis Patriae em que, como no poema de Junqueiro, tudo se desmantela e se ouve de novo “ a alma da Pátria a bradar moribunda”. Dois amigos, que há muito não se viam, encontram-se na manifestação de 15 de Setembro. Voltam ao Café onde, durante a ditadura, um deles, que parece sósia de Lenine, enchia cadernos a escrever não se sabe o quê.

O outro, narrador- conspirador, traçava, noutra mesa, com o seu grupo, planos de luta armada. De tudo isso falam. Das armas roubadas e escondidas que o sósia quer recuperar para uma nova revolução. De Ângela, namorada de um militante que foi ao Leste europeu receber instrução e que, ao voltar, foi preso e virado pela polícia. Ambos se apaixonam por ela. Recordam o tempo em que todos suspeitavam de todos e todos podiam ter sido culpados das prisões dos conspiradores. Quem se sabe se o Traidor, se Ângela ou se eles próprios. Vão passar a noite num velório numa igreja degradada de um bairro periférico.

Há um caixão fechado, numa sala fria e vazia. Quem está lá dentro? Ângela? As armas.?” –A Pátria, diz um deles. A Europa”. Essa é a ideia força: seja o que fôr que está no caixão, é a Pátria que ali jaz. Recordam a 1ª Grande Guerra, as trincheiras.” Mas já não há pátrias por que lutar”. Evocam a 2ª Guerra, a Normandia, o Holocausto, Eichman, que poupava no gás.-“Lembras-te da Alemanha do tempo dos nazis? Roubaram tudo aos judeus”.”-Quem são os judeus de hoje?–“Somos todos, responde o sósia de Lenine.

Reflectem sobre as mudanças do mundo e o conspirador conclui que hoje as armas de nada serviriam, porque “os exércitos que nos ocupam são invisíveis, não têm quarteis”. Mas talvez outro tipo de revolução tenha de acontecer, “ basta usar a internet”. Embora tudo agora seja mais difícil, porque “ é da extinção de povos que se trata, reduzi-los à miséria, à mendicidade”. Nuno Júdice não poupa nas palavras, e eu não posso deixar de fazer o contraste, com os políticos bem comportadinhos que só pensam nas carreirazinhas.

Em Gil e Júdice o sentido da sublevação intelectual é o mesmo. Diz o primeiro: …”desapossam-nos do que torna possível a nossa presença no espaço público.” E Júdice. “ A ditadura hoje é muito mais maquiavélica porque não se apresenta como tal, vivemos todos convencidos de que somos livres, e todos os dias nos impõem mais uma coisa contra nós”. Finalmente: o traidor aparece no velório, bem vestido, agora está com os do poder. Não falam. Assim ficam sem saber se veio para os matar. Ouve-se lá fora um rumor que vai crescendo. São os pobres que se juntam. De madrugada dois operários vêm buscar o caixão que, além da Pátria, só tem explosivos. O traidor afasta-se e é envolvido pela multidão. Acendem uma fogueira. –“Tê-lo-ão comido?” – Nunca se sabe o que uma multidão com fome pode fazer, diz o sósia de Lenine.

Nenhum texto político tem a força e a carga simbólica deste romance de Nuno Júdice. Tanto nele como no artigo de José Gil há uma implosão anunciada. Às vezes do fundo da alma colectiva, irrompem vozes que sabem anunciar. Ai dos políticos, e não só, que não souberem ler estes sinais.



Manuel Alegre, 25/02/2013

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