domingo, 19 de outubro de 2014

"O meu bairro tem gente de todas as cores"


Gostei tanto deste artigo que não posso deixar de o publicar:

O meu bairro tem gente de todas as cores e eu gosto de viver assim. Gosto de Lisboa com esta variedade na fila do supermercado, mistura de portugueses, imigrantes e turistas. Quando chego tarde a casa gosto de poder passar pela loja dos indianos, entender-me e desentender-me com eles na dificuldade das línguas. Um é de Gujarat, o outro do Punjab, um terceiro de Nova Deli, mas só me disseram isso depois de lhes perguntar se vinham do Paquistão, mas ficámos bem no fim da conversa. Mesmo ao lado fica a loja dos frangos assados que fecha mais cedo, ainda assim depois da oficina de metalurgia e do lugar da Lourdes que tem pão alentejano, queijo fresco e boa fruta.

É um bairro que tem gente que gosta de conversar e que vou conhecendo. A alemã seca e despenteada que espera no semáforo as moedas para o dia-a-dia. O nepalês que desmaiou de álcool e tristeza na esquina e sorriu para a rapariga da ambulância amarela. As indianas de saris coloridos a empurrar à vez o baloiço no parque infantil. O moçambicano do quiosque de jornais que faz de conta que não gosta de ninguém. Os italianos dos gelados que em pouco tempo se tornaram gente do bairro. A galeria de arte cheia de história e de artistas, com um pátio maravilhoso lá atrás. O jardim com crianças e pais e avós e velhos que jogam dominó, lagos de águas sujíssimas com patos e tartarugas.

Meses a fio apanhei o autocarro que me liga rapidamente à Baixa e fiquei a conhecer algumas pessoas, algumas famílias. A mulher concentrada em leituras, minha companheira de sete ou oito paragens - descobrimos até amigos em comum. O jovem em desequilíbrio da quarta paragem, com o pai cheio de paciência a decifrar-lhe as palavras difíceis. A Irene reformada que segue até Alcântara para ver os amigos ou então vai comer torresmos à Feira da Luz. E a Lola do restaurante na Ajuda a ansiar pela entrada da Soraia quase bebé que a tratava por avó embora só se conhecessem dali. Soraia, minha querida, pintaste as unhas, estás tão bonita. Os turistas, franceses, holandeses, japoneses, velhos, novos, casais, grupos, solitários, a pedir informações e a conversar no espanto aéreo de quem está de passeio.

Um dia, estava a chover e uma senhora perguntou ao motorista se não podia fazer um desvio para a deixar mais perto de casa. Não posso, disse ele, não posso mudar. E foi então que a Soraia deixou de aparecer (dizem que os pais se separaram) e a Lola também (dizem que o restaurante fechou).

Toda esta gente é a Lisboa do princípio do século XXI. Uma cidade perde a identidade quando abre os braços aos que vêm de fora? Não perde, não, e tem tanto a ganhar.


Ana Sousa Dias - daqui.

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