segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

"Tempo de arriscar" - por Isabel do Carmo


A pedido da Isabel do Carmo*, publico o artigo que saiu no Público de dia 09/01/2015;


A realidade da crise exige novas formas de intervenção. O apelo a um polo à esquerda, vem desde o Manifesto 3D (Dignidade, Democracia e Desenvolvimento). Concretiza-se agora na articulação do movimento Manifesto/partido Livre/cidadãos independentes e concretiza-se na Plataforma de Cidadãos Tempo de Avançar. A capacidade concêntrica da “matriosca” até podia ser uma qualidade, mas é melhor chamar-lhe um puzzle. Articulação de peças desiguais, que mantêm identidade, mas que encaixam sem sectarismo. Isso é novo, traduz uma cultura de tolerância, capacidade de ouvir e de actuar em conjunto, distante da que existia há quarenta anos. Neste período perdemos muitas das conquistas sociais, mas ganhámos como indivíduos, ao nível mental, do conhecimento, de estar com o outro. Isto transcende os círculos restritos de militantes e activistas para atingir os grandes círculos da comunidade, que se organiza em múltiplas associações, onde ninguém pergunta qual o credo ou a ideologia.

Nesta articulação sem perímetro definido, há no entanto linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas – não aceitar mais a austeridade, ou seja a pobreza, como solução para a crise que é afinal do sistema bancário. Defender em concreto o contrato social, os mecanismos reguladores e compensadores das desigualdades – ensino e saúde públicos, segurança social. Meter-se entretanto na gaveta o objectivo da igualdade de oportunidades, na diversidade. Nasce-se desigual. E a muitos isto não dá vergonha e nem sequer um sobressalto.

Dizem os especialistas que, segundo as contas, é impossível para Portugal continuar a pagar a dívida nestes moldes e manter o Estado Social. “Dívida” e “culpa” são a mesma palavra em língua alemã e também o são para os que têm a memória ancestral das dívidas à mercearia, ao padeiro, ao amigo e que são massacrados com o discurso moralista dos “sacrifícios” e do risco de bancarrota. Ora o negócio dos credores é a renda dos juros. Lutarão por ela. Todavia, a realidade não é estática. É necessário contar com o inesperado. É o que acontece com as sondagens do Syriza na Grécia e com o surgimento do Podemos em Espanha. E se a realidade da Europa do Sul, pudesse dar outra escala a este pequeno Portugal?

Olhando de helicóptero, observamos um momento impiedoso de vitória dos defensores da desigualdade, da mercantilização da vida humana, da perda de direitos adquiridos em lutas (onde já vão as oito horas de trabalho, aqui na Europa). E o trabalho foge para onde há escravatura, semi-escravatura ou trabalho não-decente para usar a terminologia da Organização Internacional do Trabalho. Parafraseando Ricardo Salgado (entrevista ao Expresso, 26.03.2011): “o sistema capitalista é amoral, tem de produzir resultados”. O problema não é este ou aquele fulano. De facto, o que está em questão é o sistema. No meio disto tudo a boa coisa foi a aparecimento do Papa Francisco. Para mim, que não sou católica, posso discutir certas zonas do cauteloso discurso papal, mas os católicos têm que engolir a pastilha por inteiro. Eu bem os observo em habilidosas deturpações ou omissões…

Vendo também de helicóptero, percebe-se que a automatização da produção vai produzir exércitos de desempregados. É só uma questão de tempo. Haverá então hordas de pessoas consideradas inúteis pelos donos do mundo. A ministra da Saúde da Lituânia já sugeriu a solução para alguns, uma vez que naquele país não há Serviço Nacional de Saúde: “A eutanásia pode ser uma boa escolha para os pobres, que em razão da sua pobreza não têm acesso ao serviço médico”.

Em Portugal, a população vê passar milhões à sua frente, no aquário, enquanto um quarto dela está em situação de pobreza. O ministro da Solidariedade já lançou uns milhares na miséria, com os cortes e quer estabelecer tectos, porque vê perigos morais (preguiça) em que os subsídios todos juntos de uma família de onze membros, somem 950 Euros! Muito respeitáveis são os membros não-executivos de conselhos de administração que recebem dezenas de milhares de euros por mês para irem lá uma ou duas vezes por ano. Esta é a matriz do pensamento dos que nos governam.

Perante esta situação, o Partido Socialista ou se volta para a esquerda, ou sofrerá o destino dos partidos socialistas da Grécia, da França e da Espanha.

E quanto àqueles que ficam à sua esquerda e com quem é possível e necessário que dance o tango, temos que arriscar. Parece que arriscamos o impossível. Mas a vida não pára. Alguns acusam a nova organização de “querer ir ao pote” ou de pretender uma secretaria de Estado. O pote é fraco para pessoas que têm as suas carreiras de investigação. Ana Drago e outros têm carreira académica e podiam preservar a sua “pureza” com distância. Reduzir o objectivo a uma secretaria de Estado é o mesmo do que deixar a esperança pendurada à porta, como se fosse uma segunda pele. No entanto, pode haver outra razão para que se arrisque vitórias e derrotas, rótulos e classificações. Essa razão é ética: não podemos deixar correr este filme como simples observadores.

*Médica. Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa

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