quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

"O papel da Concertação Social" - Sandra Monteiro


Um dos objectivos fundamentais das políticas de austeridade foi a degradação das relações laborais, em detrimento dos trabalhadores. A legislação laboral sofreu alterações profundas que permitiram reduzir o pagamento pelo trabalho feito, aumentar a carga horária, acrescentar as tarefas atribuídas a cada trabalhador, diminuir protecções em caso de desemprego, de doença, etc. Feito isto, a corrosão da esfera laboral alastra-se a toda a esfera social: os baixos salários e as más condições de trabalho repercutem-se nas condições de saúde, entravam a democratização da escolaridade até aos níveis superiores, cimentam as desigualdades e agravam as situações de pobreza, que se intensificam ainda mais no período da reforma.

A transferência de rendimentos do trabalho para o capital, eixo central do regime de austeridade, tem sido uma pedra angular de todas as intervenções de «ajustamento» feitas pelas instituições da globalização neoliberal. Primeiro elas foram feitas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, da América Latina à Europa de Leste; agora também pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu (BCE). Ainda há pouco estas instituições voltaram a lembrá-lo: «Bruxelas e FMI avisam: Portugal deve manter flexibilidade laboral» (Jornal de Negócios, 7 de Dezembro de 2017).

Significa isto que as medidas de reversão de cortes salariais, de diminuição do tempo de trabalho (reposição de quatro feriados e das 35 horas na função publica), de aumento do salário mínimo (agora nos 580 euros) e de combate à precariedade tomadas pela actual solução governativa vieram contrariar aspectos que são fulcrais ao projecto neoliberal? Sim, sem dúvida. Mas significa também que estas instituições, se nunca desistem de comprimir os direitos e rendimentos do trabalho, também adaptam a sua força compressora às expectativas que têm de ser bem sucedidas. Em Dezembro passado, por exemplo, elas insurgiam-se contra a intenção da solução governativa de transformar vínculos contratuais precários em permanentes; mas o FMI já não se referia ao aumento do salário mínimo nacional, antes tão criticado, e Bruxelas e o BCE faziam alertas, mas no fundo davam-no como adquirido.

O que define a política são as escolhas e as forças que as podem concretizar. Neste momento existe em Portugal força e legitimidade parlamentar para aprovar, como programa mínimo, medidas que devolvam rendimentos que continuam por repor, que restituam condições de trabalho e de vida que ainda não foram recuperadas. Medidas como a reposição do pagamento das horas extraordinárias e do descanso compensatório. Elas são, note-se, meramente «conservadoras» da realidade anterior à intervenção da Troika, mas foram rejeitadas pelo governo de António Costa. No debate, o argumento apresentado pela deputada do Partido Socialista Carla Tavares foi o seguinte: «"há que definir prioridades" e a do atual Governo é "o combate à precariedade", sendo que os "ajustes à legislação laboral necessários não podem ser feitos de forma desgarrada, sem uma negociação transparente em sede de concertação social, pois é fundamental assegurar estabilidade da legislação laboral para futuro"» (Expresso, 2 de Fevereiro de 2018). O governo não assume, portanto, uma oposição estritamente política de discordância. Mas vota contra e remete a discussão para a Concertação Social, essa instância onde morariam atributos tão simpáticos como «negociação», «transparência», «estabilidade» e «futuro». O título da notícia do Expresso remata tudo, aliás, para que o essencial não escape ao leitor: «PS, PSD e CDS chumbam aumento de horas extra por ser matéria de Concertação».

Mas não há motivo algum para que esta e outras medidas sejam «matéria de Concertação». O que impede o actual governo de aprovar medidas como esta na Assembleia da República? O que o leva a remetê-las para a Concertação Social? Não será certamente por não reconhecer ao Parlamento legitimidade para decidir sobre legislação laboral. Já nesta legislatura, o governo aprovou várias medidas nesta matéria e o PS tem uma longa história de aprovar alterações à legislação laboral na Assembleia da República. Nem deveria ser por ter dúvidas sobre o papel que a Concertação Social teve na dramática situação laboral a que o país chegou, em particular nos últimos anos.

A Concertação Social, ao contrário do que o próprio nome e a boa imprensa de que beneficia podem sugerir, não é um fórum democraticamente eleito pelos cidadãos, com regras de representatividade aplicadas à escolha dos parceiros. Não é um espaço de negociação de consensos entre todos, mas de procura de legitimação dos acordos entre alguns. E foi este enquadramento que permitiu, por exemplo, que estruturas patronais assinassem, com a União Geral dos Trabalhadores (UGT), um Acordo de Concertação em 2011 que serviu de base ao que ficou plasmado no Memorando de Entendimento com a Troika. Do alargamento deste texto em 2012 – novamente com as mesmas assinaturas – resultaram as várias e conhecidas formas de esmagamento do mundo laboral, mas nenhuma das vantagens na altura alardeadas, como a ilusória criação de emprego.

Num estudo publicado em Novembro de 2016 pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, intitulado «A Actividade da CPCS [Comissão Permanente da Concertação Social] de 2009 a 2015 – Ecos das Políticas Europeias», os autores (João Ramos de Almeida, Manuel Carvalho da Silva, António Casimiro Ferreira e Hermes Costa) mostram bem, com recurso às actas da Concertação, como esta sofreu um processo de instrumentalização governamental. Como resume João Ramos de Almeida, os temas tratados, com a absoluta hipertrofia da transposição das «políticas e orientações de acções definidas pelas orientações da UE» e o insignificante espaço dedicado a tópicos como o salário mínimo nacional, mostram bem as «novas entorses» ao funcionamento desta instância («Quando o Governo PSD/CDS não quis discutir reformas», blogue Ladrões de Bicicletas, 22 de Novembro de 2016).

O funcionamento da Concertação Social está desenhado para prescindir sistematicamente da adesão aos acordos de metade de uma das partes, a CGTP – Intersindical, o que se prolonga na ausência desta, de longe a maior estrutura de representação sindical, nas comissões de acompanhamento dos mesmos. Na ausência de uma discussão sobre o formato da Concertação que tenha em conta questões de representatividade, que sentido faz remeter para aqui a reversão de políticas laborais instituídas pelos partidos de direita durante os anos da Troika? Haverá maior desaproveitamento da legitimidade, da força social e política que a actual solução governativa traduz? Haverá melhor caminho para deslocar para o centro, para um qualquer «bloco central», o futuro político da governação?

Restaria um argumento para justificar a decisão: o de que haveria medidas, em particular na área laboral, que o governo não quer tomar por receio da oposição das instâncias europeias e internacionais. É verdade que essa oposição pode sempre surgir. Como foi atrás referido, as engenharias neoliberais têm no trabalho um dos seus alvos de eleição, mesmo se adaptam as pressões exercidas ao grau de receptividade que elas podem encontrar nos poderes políticos nacionais. Mas, até por isso, se o objectivo for evitar uma oposição externa das forças neoliberais, não seria vantajoso que quem se opõe a essas forças assumisse com clareza política as suas propostas? Que, reivindicando valores e princípios que fundaram a tradição socialista, contribuísse para o crescimento da força social que poderá opor-se a décadas de expansão do neoliberalismo?


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