quarta-feira, 7 de março de 2018

"Desocultar o desemprego real" - Sandra Monteiro


As estatísticas são instrumentos imprescindíveis para o conhecimento da realidade, mas criar os indicadores em que elas se baseiam não é um exercício neutro. Implica fazer escolhas. Estas construções, assentes em metodologias que devem ser transparentes, evoluem no tempo e no espaço. Se forem pouco adequadas para dar a conhecer uma realidade, devem ser abandonadas ou aperfeiçoadas. Este processo beneficia de um diálogo permanente entre os especialistas que as elaboram, em universidades, centros de investigação ou administrações, e o poder político e os cidadãos, cujas escolhas devem ser informadas pelo melhor conhecimento disponível.

As estatísticas mostram e ao mesmo tempo ocultam diferentes aspectos da realidade, contribuindo para desencadear mudanças ou consolidar permanências. Mais do que de fenómenos «naturais» de visibilidade ou invisibilidade social, elas reflectem processos de análise que criam, eles próprios, lugares de visibilização e de invisibilização. Quando os indicadores são construídos de forma sistemática e com metodologias idênticas, permitindo comparações entre os períodos e os países, como acontece com as estatísticas nacionais oficiais e as elaboradas pelo organismo europeu, o Eurostat, é fácil compreender que estamos perante um poderoso mecanismo de formatação do que sabemos, para lá das impressões individuais, e do que colectivamente decidimos fazer.

Sabendo-se que a mais recente crise financeira elegeu o mundo do trabalho como alvo preferencial das suas engenharias neoliberais, são preciosos os estudos científicos que propõem análises estatísticas do emprego, do desemprego e da precariedade que vêm completar as oficiais. Referimo-nos aos estudos que, inspirando-se em metodologias sugeridas em 2013 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), integraram nos números do desemprego situações excluídas pelos indicadores oficiais e que têm, como concluíram, um peso muito significativo.

O estudo mais recente foi efectuado no âmbito do Observatório das Desigualdades e juntou à parcela do desemprego quatro categorias de desempregados não contabilizadas pelos números oficiais: os inactivos desencorajados, os subempregados, os indisponíveis e os ocupados em programas operacionais do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). O estudo concluiu que o desemprego real no terceiro trimestre de 2017 era mais do dobro do oficial: 17,5%, em vez dos 8,5% registados [1]. Calcular esta «taxa de desemprego alargada ou redimensionada» não invalida que esteja a registar-se, com a actual solução governativa, uma diminuição do desemprego, e até um aumento do emprego. Comparar os números oficiais actuais do desemprego, que no último trimestre de 2017 eram já de 8,1%, com os números oficiais de anos anteriores (que chegaram a atingir um máximo de 17,5% em 2013) mostra uma tendência positiva, mas fica muito aquém de dar conta da realidade do desemprego. E isto mesmo que, desde Agosto de 2017, o Instituto Nacional de Estatística (INE) tenha começado a publicar também os dados da «subutilização do trabalho»: foi quanto bastou para praticamente duplicar o total da população desempregada no segundo trimestre de 2017, mas ficou apenas como indicador suplementar (sem alargar a taxa de desemprego) [2].

O que explica que continue a ser utilizado um instrumento estatístico claramente desajustado da realidade? Olhemos para a parcela agregada pelo estudo do Observatório das Desigualdades que é composta pelos desempregados ocupados em programas operacionais do IEFP. Até 2011, estas pessoas faziam parte das estatísticas oficiais do desemprego; a partir desse ano, foram retiradas. Para avaliar o impacto desta escolha basta ver como mudam os resultados em função de se integrar ou não os desempregados ocupados. Os autores do estudo indicam que o seu número pouco diminuiu desde 2015, tal como o dos desencorajados, sugerindo que o aumento do emprego ficará a dever-se mais à entrada de jovens no mercado do trabalho. Há aqui com que questionar as políticas de integração no mercado de trabalho por via dos centros de emprego, em particular no desemprego de longa duração. Mas centremo-nos no peso persistente dos ocupados pelos centros de emprego, até porque o problema é anterior a 2015.

Curiosamente, ou não, o grande crescimento destes desempregados ocupados data, justamente, da altura em que foram retirados das estatísticas oficiais. Sabemos isto desde 2015, quando um outro estudo, da autoria do Observatório sobre Crises e Alternativas, já havia decidido, em plena crise e perante uma subida histórica do desemprego, ter em conta realidades do mercado de trabalho que «os critérios oficiais, harmonizados pelos conceitos do Eurostat, não acompanham devidamente» [3]. Ao desemprego oficial, o estudo juntou os subempregados, os inactivos desencorajados, os activos migrantes (ausentes no estudo do Observatório das Desigualdades, mas particularmente relevante no período em que a emigração, grande parte dela forçada, atingiu níveis históricos) e os desempregados ocupados. Sobre estes últimos, afirmava-se então que, quer em valores absolutos, quer no peso que tinham no total de desempregados do IEFP, até 2012, «nunca o número de desempregados ocupados ultrapassou a barreira dos 40 mil (…). Após 2012 – e até ao final de 2014 – a média trimestral passou a situar-se nos 117 mil, tendo mesmo atingido, no final de 2014, um total de 171 mil desempregados. Até ao início do processo de “ajustamento”, o número de desempregados ocupados nunca foi além dos 7% do total de desempregados. Mas em apenas três anos passou a situar-se em 30%».

Em 2015, o estudo do Observatório sobre Crises e Alternativas estimou que, somadas as formas de desemprego acima referidas, «a taxa real de desemprego poderia situar-se, no segundo semestre de 2014, em 29% da população activa, caso os trabalhadores emigrados tivessem ficado no país». É curioso observar que, usando uma metodologia diferente, que não inclui os activos que emigraram, o estudo do Observatório das Desigualdades concluiu agora que no primeiro trimestre de 2013 o desemprego real ascendeu aos 28,1%, tendo ficado sempre acima dos 25% até ao primeiro trimestre de 2015 e, só depois, descido até aos 17,5% verificados no fim de 2017.

Apetece perguntar o que ficaríamos a saber sobre os dados do desemprego na Europa se em todos os países houvesse investigação científica independente, idealmente concertada nas suas metodologias para efeitos de comparação, que alargasse e redimensionasse a taxa de desemprego que depois serviria de instrumento para políticas públicas. Talvez isso contribuísse para desocultar formas de vulnerabilidade laboral e social que seriam consideradas insuportáveis em sociedades decentes. Desde logo pelo sofrimento individual que essa vulnerabilidade representa, mas também pelo que anuncia de corrosão da Segurança Social e de perpetuação das desigualdades socioeconómicas ao longo de toda uma vida, do trabalho à velhice.

terça-feira 6 de Março de 2018

Notas

[1] Natália Faria, «Desemprego real atingiu os 17,5% no final de 2017, o dobro do oficial», Público, 2 de Março de 2018.

[2] Agência Lusa, «Subutilização do trabalho corresponde a “praticamente o dobro” dos desempregados», Diário de Notícias, 9 de Agosto de 2017.

[3] Observatório sobre Crises e Alternativas, «Crise e mercado de trabalho: Menos desemprego sem mais emprego?», Barómetro das Crises n.º 13, 26 de Março de 2015.

Sem comentários: