sexta-feira, 6 de julho de 2018

"A divergência europeia" - Sandra Monteiro



As conclusões da reunião do Conselho Europeu de 28 e 29 de Junho tinham tudo para suscitar, sobretudo em países como Portugal, um amplo debate sobre a natureza do projecto europeu realmente existente, sobre a arquitectura de uma moeda única que aprofunda rotas de divergência económica e social entre países deficitários e países que acumulam excedentes. No meio de reformas adiadas ou de preparação, estejam elas relacionadas com o reforço do Mecanismo Europeu de Estabilidade, com a criação da União Bancária ou de um orçamento da zona euro, não se vislumbram quaisquer propostas capazes de corrigir os desequilíbrios estruturais que crescentemente transformam o projecto europeu numa má solução para o desenvolvimento sustentável, e socialmente justo, de muitos dos seus países-membros.

As pouquíssimas alterações que as instituições da União Europeia introduziram nos últimos anos não alteraram substancialmente a capacidade que ela terá de prevenir ou de responder às crises futuras. Mas o problema não está apenas na sua inacção ou nos «acordos mínimos» a que chega nestas matérias; está no sentido do que continua a preparar e no conteúdo do que vai decidindo, em clara contradição com objectivos de estabilidade e de coesão. Para que servirá um orçamento da zona euro num quadro em que países como Portugal continuam a sofrer pressões para reduzirem despesa pública primária, em particular na saúde? Ainda por cima quando o reverso dessa austeridade – que pode ser de baixa ou de alta intensidade, mas que não larga as políticas europeias – é a pressão para o aumento de outras despesas, seja para pagar uma dívida socialmente insustentável, seja para acompanhar a escalada de militarização que está em curso no espaço europeu. Antevendo choques assimétricos que vão ser inevitáveis, o que está a ser feito para regular o sistema financeiro que não seja esse movimento europeu de concentração bancária em instituições que se anunciam, cada vez mais, demasiado grandes para deixarem de ser salvas?

Tanto pela acção como pela inacção, o Conselho Europeu e as demais instâncias europeias decidiram, de facto, prosseguir políticas de divergência entre os seus Estados-membros (rendimentos, poupanças, moeda, protecção social…), mesmo correndo o risco de uma futura desintegração. Os resultados são de uma enorme gravidade. Mas estas políticas de divergência económica e social acabaram por ser relativamente abafadas, no mesmo Conselho, pela chocante divergência política em torno da gestão europeia dos fluxos migratórios. Como dizia o jornal Expresso, «com tantas divergências e braços de ferro durante a discussão sobre as migrações, o debate para a reforma da zona euro até pareceu fácil» [1]. Uma «facilidade» nada inocente e bastante conveniente.

É que, por muito que pareça ter diferentes protagonistas, a União Europeia que despreza a coesão entre os seus povos é a mesma que condena milhares de seres humanos à morte no Mediterrâneo, ao sofrimento pelas estradas e cidades europeias, ou à expulsão para cenários de flagelo e de guerra. Seres humanos que tentam alcançar o território europeu, arriscando a vida, para fugir à violência e à miséria que assola os seus países – tragédias que acontecem também por responsabilidade das políticas armamentistas e bélicas de Estados da União nestes países. O acordo que a União Europeia estabeleceu com a Turquia em Março de 2016, e que já então desprezava os direitos previstos na Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Genebra, 1951), devia ter sido considerado ainda mais insustentável perante a escalada autoritária da Turquia, e ainda mais desnecessário face ao enorme abrandamento dos fluxos migratórios para a Europa entretanto verificado. Mas o Conselho Europeu decidiu o contrário: em mais um passo de desprezo pelo direito internacional e pelo dever de assistência aos que requerem asilo e protecção, optou por tornar essas políticas voluntárias, assentes em acordos bilaterais entre Estados; estendeu a Marrocos e à Líbia a «externalização» que já acordara com a Turquia (com quem esse acordo continua); e inventou toda uma panóplia de espaços com nomes eufemísticos para designar centros e campos ao serviço do fechamento de fronteiras, nos quais o humanismo e a solidariedade ficam à porta.

Não há, de facto, uma crise das migrações e muito menos dos refugiados. Há uma crise do acolhimento europeu e da integração solidária, e não subalternizadora, dos mais frágeis. Como já antes havia, dentro da União e por causa da arquitectura europeia, uma crise assimetricamente distribuída pelos diversos países e, dentro destes, pelas diferentes classes sociais. Há, em suma, todo um edifício que é disfuncional e ameaça fragmentar-se. O que falta é músculo político e social para que não quebre num sítio que ainda piore tudo, o que exige que se encarem de frente as suas injustiças e debilidades estruturais.

Em vez disso, contudo, em Portugal, depois de o Conselho Europeu ter apresentado as suas desastrosas conclusões, o debate político depressa passou do choque (no caso das migrações) e da desvalorização (no caso da zona euro) para o esquecimento da dimensão europeia dos problemas graves que afectam o país. E esquecer essa dimensão atrasa, se não compromete mesmo, as respostas a dar a esses problemas. Com efeito, de que vale o esforço de um governo que rejeita a austeridade para explicitar o quadro de restrição orçamental em que actua se não for para, ao ver-se confrontado com a impossibilidade de fazer escolhas da mais elementar justiça social, promover a denúncia desse mesmo quadro de restrições e, fazendo-o, gerar consciência cidadã e força social que o apoiem na contestação dessas restrições? Se não for para isso, não acabará por desistir do combate à austeridade e conformar-se às pressões orçamentais europeias, perdendo o apoio social que o fundou?

Um exemplo. O primeiro-ministro António Costa, num contexto de crescimento do protesto social, alimentado pela frustração de expectativas em vários sectores (professores, leis laborais, saúde…), fez uma declaração que acaba por sinalizar esse isolamento e essa encruzilhada em que se encontra, por não questionar os constrangimentos europeus. «Numa fase da nossa vida em que de repente toda a gente acha que é possível fazer tudo, já e ao mesmo tempo, é preciso termos em conta que, quando decidimos fazer esta obra [requalificação do IP3 entre Penacova e Lagoa Azul], significa que estamos, simultaneamente, a decidir não fazer outra obra. (…) Que quando estamos a decidir fazer esta obra, estamos a decidir não fazer evoluções nas carreiras ou vencimentos» [2], afirmou o primeiro-ministro.

É de facto importante que se perceba que fazer política é fazer escolhas. Mas, quando as escolhas que estão disponíveis são demasiado restritivas, senão trágicas, convém questionar o próprio quadro que as cria, sob pena de se participar activamente no afunilamento do campo dos possíveis e de se ficar reduzido ao papel de rolo compressor de expectativas.

sexta-feira 6 de Julho de 2018

Notas

[1] Susana Frexes, «Orçamento da zona euro já não causa apoplexia», Expresso, 30 de Junho de 2018.

[2] TSF, 2 de Julho de 2018.

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