CARIDADE E SOLIDARIEDADE
Evitei entrar na primeira polémica resultante das palavras de Isabel
Jonet, embora não tivesse nenhuma dúvida sobre o seu significado
“mental” e sua história. Mas Jonet faz uma obra de mérito, e a obra vale
mais do que a “teoria”, pelo que alguma moderação era exigida. Há casos
em que apesar de se pensar mal, se faz bem. Não abundam, mas existem.
Mas, como disse, não tinha qualquer dúvida de que memória é que vinham
as suas afirmações, que seriam sensatas se não fossem ditas no contexto
da actividade caritativa e do actual discurso governamental sobre como
“os portugueses vivem acima das suas posses”. Vinham de ideias como as
que caracterizaram cinquenta anos de pensamento sobre a pobreza em
Portugal, expressas na frase brutal, mas actualíssima, “leve lá uma
esmola, mas não gaste em vinho”.
POLITIZAR A CARIDADE
Jonet em vez de ter percebido o mal que está a fazer à sua própria obra,
– e que, como é óbvio, não pode ser medido pela contribuição generosa
dos portugueses, que também sabem fazer distinções, - resolveu insistir e
teorizar. Está com isso a politizar no pior sentido a actividade do
Banco Alimentar e a prejudicar o esforço da única instituição que a
nível nacional actua com genuíno sentido de “caridade”, a Igreja. Quem
escreve estas linhas propôs, em tempos ainda socráticos, que os fundos
que o estado disponibiliza para a assistência fossem atribuídos a
instituições da Igreja que sabem muito melhor a quem eles devem chegar e
com maior eficiência. E não mudei de opinião. Tenho porém poucas
dúvidas que algumas das pessoas mais preocupadas com a crescente
politização do discurso de Jonet são os bispos, que conhecem a realidade
portuguesa muito melhor: no aspecto assistencial, social e político. E
sabem o papel que teve a doutrina social da Igreja na transição da
caridade para a solidariedade, da evolução da assistência paternalista
para os direitos sociais.
Para não ir mais longe, Sá Carneiro não só perceberia de imediato o que
Jonet está a dizer, como o recusaria sem dúvidas em nome da sua formação
humanista e religiosa, as duas. Sá Carneiro, e isso ficou inscrito no
programa original do PSD, valorizava o papel que a dignidade humana
tinha e, se não reduzia o “homem”, na sua dimensão transpolítica, ao
conceito de “cidadão”, também não substituía os direitos pelas benesses
da caridade, por muito dedicadas e esforçadas que sejam. A caridade é
para quem precisa e muito, mas a solidariedade social é um fundamento do
estado moderno, pensado por democratas-cristãos e social-democratas. E
os direitos “adquiridos” são uma identidade da “melhoria” colectiva das
sociedades, fruto da justiça social e dadores de dignidade e de
liberdade.
SUBSTITUIR DIREITOS PELA ASSISTÊNCIA
O que Jonet disse ao i foi o oposto. Valorizou a caridade
no sentido tradicional cristão, o que em nada me choca. A semana passada
usei a mesma palavra nesta coluna, no mesmo exacto sentido de “agape”,
para falar da obrigação que sentia de escrever sobre a crise. Mas não
parto daí para a ideia que se deva contrapor a caridade à solidariedade,
a boa vontade voluntária do “amor” assistencial face à obrigação social
do estado. É o que Jonet diz:
A solidariedade é algo mais frio que incumbe ao Estado e que não tem que ver com amor, mas sim com direito adquiridos. (…) Sou mais adepta da caridade do que da solidariedade social…
Na verdade, a “caridade” não é “quente” devido ao “amor”, face ao
“frio” da solidariedade do estado, porque não são a mesma coisa, a não
ser que a caridade cometa o pecado de se vangloriar de si mesma, ou
seja, assumir uma vaidade mundana, e violar o preceito bíblico de que
“não saiba a tua mão esquerda, o que faz a direita”. Então a caridade
deixa de ser “amor” para ser uma proposta política de organização da
sociedade.
Este tipo de comparações levariam a uma sociedade em que a exclusão
seria institucionalizada como poder, em que os problemas sociais seriam
resolvidos pela dádiva dos mais ricos aos mais pobres, o que contém
implícita uma ideia sobre o poder “natural” da sociedade e sobre a
relação paternalista entre os que têm e os “seus” pobres, a quem, no
passado ainda próximo, o diminutivo colocava no lugar, os “pobrezinhos”,
crianças grandes, pobres mas “honrados”, nas suas casinhas humildes,
mas limpas. Este tipo de ideias sobre a pobreza são ofensivas da
dignidade humana e implicam uma relação humilhante entre quem dá e quem
recebe, em particular quando a caridade se mistura com “conselhos” de
como se deve viver, uma arrogância moral insuportável face a quem não
pode viver como queria. “Leve lá uma esmola, mas não gaste em vinho”.
POBREZA E VERGONHA
Por que é que as pessoas “escondem” a sua pobreza quando caiem nela? É
porque recorrer à caridade pode ser uma necessidade imperiosa, mas é uma
perda de dignidade social e humana, uma humilhação. É uma “vergonha”. É
por isso que quem em política pensa como Jonet, tende a desvalorizar o
imenso sofrimento que a crise está a provocar, nas suas dimensões
psicológicas e humanas, muito para além das necessidades básicas de
casa, comida, luz, água e transportes, medicamentos e roupa. Porque
quando é assim, e é o que Jonet anda a fazer com as suas declarações,
elas não são sobre a caridade, mas sobre a sociedade e a política e
devem ser discutidas como tal.
José Pacheco Pereira
José Pacheco Pereira
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