domingo, 3 de novembro de 2013

"POR QUE É QUE HÁ DEZENAS DE MILHARES NA RUA EM VEZ DE CENTENAS? " - por José Pacheco Pereira




1. Prevenção inicial: as manifestações mais recentes não foram o sucesso que os seus organizadores previam, mas convém lembrar aos seus fáceis detratores (que nem duzentas pessoas arranjam para encher uma sala com o Primeiro-ministro) que mesmo assim muitos portugueses, na ordem das dezenas de milhares se manifestam com a CGTP e com as outras organizações, somando-se, como se deve somar, Lisboa, Porto e outras concentrações mais pequenas e “públicos” diferentes conforme as convocações.


2. Mas que há um cansaço das manifestações, há. E que não augura boa coisa, também não. E não é certamente porque os portugueses “percebem” lá no seu íntimo o governo e as suas medidas, e por isso não vêm à rua em massa, uma mirabolância do pensamento que deve fazer mal ao cérebro dos que a repetem. O “bom povo português” está completamente farto deste governo e destas políticas e se tivesse o botão que matava o Mandarim na China à sua disposição, faria filas de quilómetros para ir lá tocar. É exactamente por isso que não há eleições antecipadas e se fazem todas as piruetas para as evitar a todo o custo.


3. De passagem, anoto o curioso argumento da direita anti manifestações que implica que só haveria protesto a sério quando toda a gente andasse a partir montras, à grega. Até lá podem meter multidões na rua, que “não conta”. Parece que só “conta” quando há violência. É tão curiosa essa atitude, do género “estão mesmo a pedi-las”, que não abona muito à inteligência de quem a enuncia como se fosse a coisa mais natural deste mundo.


4. Os portugueses não vão em massa à rua porque não sabem o que fazer e não lhe agradam as alternativas oferecidas em democracia. E isso é que é perigoso. Seguro não mobiliza nem o seu braço esquerdo, quanto mais os portugueses. O grande vazio da política portuguesa é o PS e isso por si só cria um estado de apatia no protesto, quando um partido clama contra o governo atribuindo-lhe medidas gravíssimas e depois se fica por uma frouxa intervenção parlamentar ou pela ladainha: “como eu já disse há muito tempo…” Se os tempos são assim tão graves, por que raio é que a “responsabilidade” do PS se concentra toda em ficar pelos salamaleques? Desde quando é que o facto de um partido pretender governar o impede de, por exemplo, se manifestar, se toma a sério a gravidade do que o governo está a fazer? O PS é um entretenimento para o governo e o cancro de protesto.


5. Ir para rua com o PCP ou o BE tem poderosas limitações, para muitos portugueses que não se revêm nesses partidos, nem nas soluções que eles apresentam. A CGTP mobiliza mais, mas uma coisa são as manifestações de rua outra as greves e protestos por sector profissional, onde a ruptura com a UGT impede movimentações para lá do habitual em sectores críticos. (Desse ponto de vista, uma prova importante é a greve da função pública no dia 8 de Novembro.). Mas, seja como for, não adianta andar com “esquerda” face á direita” como se isso mobilizasse alguém, numa crise que de há muito ultrapassou essa dicotomia que é redutora.


6. Depois há a qualidade da “oferta” manifestante. Começa pelo nome “que se lixe a troika”. Começa mal, porque a uma dada altura o nome que parecia trivial e engraçado torna-se um obstáculo. Para muita e boa gente o “que se lixe” tem como primeiro e principal destinatário, o governo. “Que se lixe o governo” teria muito mais sentido, porque a animosidade com o governo é que é o motor da “rua” e não a troika de per si. O que é que vão fazer quando a troika for formalmente embora daqui a meses? Ficam sem nome. “É o governo, estúpidos!”, diriam os americanos.


7. Depois há qualquer coisa de errado no plebeísmo do “que se lixe”. Nem é um insulto directo do género do “vai-te lixar” bem substituído por expressões mais vernáculas com sólida tradição latina que, a julgar pelos cartazes espontâneos das manifestações, são muito mais eficazes. O problema é que é um plebeísmo mole, é grosseiro sem ser verdadeiramente ofensivo, afasta mais gente do que agrega, podia estar num cartaz mas não mobiliza quando é um nome de um movimento. Aliás, depois de Passos Coelho o ter usado no “que se lixem as eleições”, eu fugia a sete pés dessa irmandade vocabular.


8. O excesso de “culturalismo” dos organizadores leva-os a pensar que a palavra de ordem obscura de “não há becos sem saída”, mobiliza alguém, tanto mais que “saída” é o que de todo não lhes é oferecido. A palavra de ordem é atentista e todo o grafismo e a parafernália mais ou menos folclórica acantona o apelo da manifestação nos jovens radicalizados, e, como dizia um velho furioso com o governo, ele não ia a essa coisa dos “freaks”. Ou seja, muitos dos sectores mais atingidos pela crise não se reveem na “estética” do “que se lixe a troika”, e isso facilita a debilidade do movimento, uma vez passada a moda inicial.


9. Pode-se argumentar que o “Que se lixe a troika” mobilizou a maior manifestação da história da crise, que hoje é particularmente útil para os que não querem, minimizam, atacam o próprio princípio da manifestação. Só que, havia tantas ambiguidades nessa manifestação que ela iria ser inevitavelmente única, porque só se é virgem uma vez. A mesma perda de virgindade funciona para a comunicação social, que foi a grande propagandista da manifestação (e não as redes sociais), e que, perdida a novidade, reduziu as manifestações do “Que se lixe a troika” à sua verdadeira dimensão. Sem a trombeta da televisão e do jornalismo amigo, a flauta do Facebook não chega e é demasiado preguiçoso para mobilizar em termos eficazes. Veja-se o trabalho meticuloso da CGTP, sem o qual o protesto social seria errático e muito mais fraco.


10. Mas há uma coisa que a “esquerda” não compreendeu e é incapaz de contrariar: é que o discurso da divisão vindo do poder é eficaz quando há uma crise de representação e os que estão a empobrecer são deixados na solidão da sua condição. Em vez de olharem para cima, olham para o lado. Dividir novos de velhos, empregado de desempregados, privado do público, vai ficar para muito tempo a estragar Portugal, desagregando a força do protesto e impedindo-o de juntar os “rios” (uma metáfora que usei aqui e que circula por aí) e acima de tudo dos engrossar. E não é pela repetição dos posicionamentos e da língua de pau tradicional que se defronta essa cizânia.


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