segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"Viva a política" - Sandra Monteiro

«A situação para Portugal não muda. A situação económica e financeira não muda de um dia para o outro devido às eleições. Por isso, não creio que haja razão para uma grande mudança de política neste momento.» Assim comentou Jeroen Dijsselbloem o resultado das eleições legislativas portuguesas ocorridas na véspera, 4 de Outubro. Quiseram os acasos do calendário que estas declarações, feitas pelo presidente do Eurogrupo, uma instância que reúne os ministros das Finanças da zona euro sem ter existência legal, fossem proferidas no dia 5 de Outubro, data que assinala a implantação da República portuguesa e que, não só deixou de ser feriado nacional, como ainda tinha nesse dia comemorações em que o presidente da República decidiu não participar. Para Dijsselbloem, o resultado das eleições ainda era «ambíguo»; mas mais ambígua é a qualidade da democracia em que vivemos.

O presidente do Eurogrupo salientou, no fundo, o mesmo que foi dito à Grécia depois da eleição do primeiro governo do Syriza: as eleições não mudam nada nos países do euro com economias mais fracas – deficitárias, com dívidas externas e públicas para lá do sustentável, com padrões de especialização produtiva bloqueados –, porque estes países, se pretenderem manter-se dentro do euro, o que implica cumprir os tratados e as metas orçamentais, têm de se submeter, convictamente ou forçados, à continuação da austeridade, às privatizações, à perda de direitos laborais, ao desemprego, à precariedade, aos baixos salários e a um Estado social encolhido, decadente e para pobres. Em suma, para esta «situação económica e financeira» só há «uma política», a do neoliberalismo austeritário, seja qual for o resultado das eleições. Ou, como se apressou a dizer o ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble, a austeridade (reformas estruturais, políticas de ajustamento) é para continuar.

À escala das instituições e dos poderes europeus, esta ortodoxia radical é absolutamente hegemónica. Não permite, como o caso grego mostrou com o acordo de 13 de Julho, a mais leve e sensata alteração ao seu projecto político, porque entende que qualquer desvio de rota ameaça todo o edifício. São assim os projectos totalitários: não admitem críticas nem alternativas, têm horror ao pluralismo e só suportam a democracia enquanto ela lhes permite executar, com a ajuda de manipulações mediáticas e outras, um poder inquestionado.

Mas depois há os povos, as democracias. Que questionam. Que resistem ao que consideram errado, injusto e não permite melhorar a vida da sociedade. Assim como os projectos totalitários não nasceram nem se impuseram de um dia para o outro, também os que os contestam passam por processos, por combates que crescem, que diminuem, que voltam a crescer… Só do lado dos totalitarismos a política é vista como o exercício de um projecto fechado, como algo que pudesse subtrair-se à história, às dinâmicas do tempo e do espaço. Do lado do campo democrático, a política é vista, e tem de ser vivida, como constante mutação, como jogo de possíveis em que «apenas» se escolheu um lado: o da liberdade, o da igualdade, o da fraternidade.

Para este campo, a noite eleitoral trouxe muitos sentimentos ambivalentes. O facto de a coligação da direita convictamente austeritária ter sido a força mais votada – mesmo tendo esta prometido em campanha que os tempos da austeridade são já coisa de um passado tristemente sacrificial – não pode deixar de ser muito decepcionante. Sobretudo num país com tantos milhões de pessoas esmagadas pela pobreza, pelo desemprego e pela precariedade. A alegria mal contida de vários responsáveis europeus por o caso português ter demonstrado que é possível impor uma austeridade duríssima e ganhar eleições ainda mais contribuiu para esse sentimento de desilusão de quem queria uma punição eleitoral mais clara. Mas, ao contrário do que afirmou o presidente do Eurogrupo, hoje a situação política em Portugal não é de todo a mesma. Com a perda da maioria absoluta por parte da coligação de direita e a necessidade de haver acordos que a extravasem para que as suas leis e o seu orçamento do Estado sejam aprovados no Parlamento, a austeridade neoliberal é ferida onde mais lhe dói: na perda do seu poder totalitário.

Não é por acaso que um dos objectivos mais referidos nos últimos meses por todo o arco austeritário, nacional e europeu, tem sido o da «estabilidade». Os eleitores responderam, na sua maioria, que estão mais interessados numa outra estabilidade: não esta, parada e fechada, mas uma outra, a do movimento e da construção de alternativas possíveis. Alternativas possíveis, com tudo o que isso tem de abertura e de incerteza. É isso a política em democracia. O que fazer com uma maioria de votantes que votou, não na coligação de direita, mas noutras formações que se manifestaram contra a austeridade, e com uma representação no Parlamento, que cresceu para quase 20%, das forças que associam a recusa da austeridade à obtenção de meios económicos e financeiros para a poderem verdadeiramente recusar?

Aprendemos com a gestão pela União Europeia das legítimas aspirações do governo grego de encontrar um rumo não austeritário para o seu país – retirar a economia da galopante dependência financeira, da depressão económica e da crise humanitária – que os credores institucionais e uma Europa punitiva entendem que só há uma solução para os que ficam: aceitar o pacote todo, sem excepções, tal como ele foi concebido pelo ordoliberalismo e executado pelo austeritarismo. Sabemos também que sem uma profunda reestruturação da dívida, que proteja os credores não institucionais (pequenos aforristas, etc.), não há possibilidade de encontrar os meios materiais para defender o Estado social e de direito, nem os serviços públicos universais e tendencialmente gratuitos (educação, saúde…), esse «arco da Constituição» maioritário, na expressão feliz do economista Ricardo Paes Mamede. Não há também possibilidade, em consequência, de actuar sobre os desequilíbrios duradouros da nossa economia, sobre que padrão de desenvolvimento devemos ter, etc. A reestruturação da dívida traz consigo a possibilidade do incumprimento dos tratados e da saída no euro. Defender o fim da austeridade implica colocar estas questões em cima da mesa. Só há uma coisa pior do que ter de escolher entre um fim horroroso e um horror sem fim: é não saber o que significa nenhum dos dois.

Os resultados das eleições legislativas recuperam, na esfera da representação parlamentar, espaços de negociação e de compromisso que aliviam parte das imposições da legislatura anterior. Mas, sobretudo porque o diktat europeu não se alterou (quando pressionado, só se absolutiza), o debate político e a prática política terão de continuar, entre os cidadãos como entre os seus representantes eleitos, a ocupar todos os espaços em que possa informar, analisar, debater, juntar forças. Quando a União Europeia só dá duas hipótese, mais austeridade ou saída do euro, aceitamos sacrificar a vida de mais e mais concidadãos, de qualquer um de nós, ou juntamo-nos, nas ruas e onde bem entendermos, e fazemos política?


Sem comentários: