O processo de discussão e aprovação do Orçamento do Estado para 2016 fornece já matéria de sobra para se reflectir sobre as práticas e os discursos políticos que enquadram as respostas dadas à crise pelo dois campos que esta criou: o austeritário e o anti-austeritário, cada um dos quais com escala nacional e europeia. O Partido Socialista (PS), que governa no âmbito dos acordos com as forças políticas à sua esquerda, sabe que apresentou à votação um Orçamento mais restritivo do que aquele que o governo inicialmente submeteu à «avaliação» das instâncias da União Europeia. Isto significa que o garrote europeu às políticas alternativas já começou, mesmo que se considere que ocorreram a um nível aceitável.
A focagem no acordo alcançado com a União alimenta para já a ideia, verdadeira aposta dos socialistas, de que existe margem de manobra nas instâncias europeias para aceitar orientações e políticas contrárias à ortodoxia neoliberal dominante. Mas a marca indelével das imposições europeias já lá está: como todos, à esquerda, admitem, o Orçamento veio de Bruxelas pior.
Mesmo assim, o documento agora aprovado no Parlamento rompe, em aspectos significativos, com a governação dos anos anteriores, permitindo afirmar que 2016 será um ano de importante redução da austeridade sobre as classes baixas e médias, aumentando pensões e salários, sobretudo na função pública (onde mais haviam sido reduzidos), e reforçando também as prestações sociais, ainda que ao nível dos desempregados, por exemplo, metade dos quais não usufruem de qualquer fonte de rendimento ou prestação social, muito fique ainda por fazer.
Com este Orçamento, a vida da maioria das pessoas deverá melhorar, o que não pode deixar de ser elogiado. Foi, aliás, por se verificar que a resposta austeritária à crise tem confirmado ser parte fundamental do problema social e económico, e não da sua solução, que a esperança deu força às políticas alternativas: deter e reverter a operação de transferência de rendimentos do trabalho para o capital, e de recursos do público para o privado; defender o Estado social e os serviços públicos; promover o consumo interno, o investimento público, o crescimento e o emprego.
Nem todas estas linhas de orientação política têm, neste Orçamento, igual concretização. Muitas das reversões aos cortes do «ajustamento estrutural» são apenas parciais, outras avançam a conta-gotas, outras aguardam melhores dias. O investimento público e as políticas de desenvolvimento ficam aquém do necessário, sendo difícil imaginar como irão ocorrer reduções substanciais da taxa de desemprego ou alterações no desgraçado padrão de especialização produtiva do país. A reposição do horário de 35 horas na função pública ainda aguarda melhor definição, mas não pode deixar de ser vista como fundamental, até no quadro desta luta pelo tempo que caracteriza os combates sociais e que, por sua vez, liberta o tempo necessário aos combates futuros. A lógica de multiplicação de «tarifas sociais», como na electricidade, alivia, sem dúvida (diminuindo sofrimento) os esforços das camadas com mais dificuldades em pagar as facturas, mas deveria ser repensada no quadro mais amplo de como garantir a todos um verdadeiro acesso a algo que deve ser visto como um serviço público (e como tal administrado), evitando que a provisão pública se limite a criar remendos que, ainda por cima, confortam também os accionistas de empresas privadas. A proposta de alargamento da ADSE a cônjuges e filhos até aos 30 anos devia também suscitar um amplo debate na sociedade. É claro que não poderão ser prejudicados os direitos de quem descontou para este subsistema de saúde dos funcionários públicos – e até meados de 2010 isso nem era facultativo –, mas como não ter em conta o quanto ele tem contribuído para a destruição do Serviço Nacional de Saúde (SNS), seja alimentando lucros privados (pagos através do Estado), seja desaproveitando capacidades instaladas no SNS, seja afastando parte da população que poderia melhorá-lo?
Há ainda os outros debates, os que passam um pouco ao lado do Orçamento, como se previa tendo em conta que os acordos partidários assumiram o cumprimento das regras e dos tratados europeus, desde logo o Tratado Orçamental. Que questões são essas? Não são apenas os problemas globais de um sistema financeiro que usa os Estados para se recapitalizar. São também as exigências concretas e insustentáveis de uma dívida pública que é usada como instrumento de condicionamento político e como ameaça: quem ousar fazer uma reestruturação da dívida (prazos, montantes, juros) que inflija perdas aos credores corre o risco da saída do euro. Mas nada é dito, claro, sobre os riscos de tentar pagar a dívida ou de permanecer no euro.
Se as ameaças e imposições desta União Europeia em auto-decomposição chegarem ao ponto de obrigar o país a empobrecer com planos de «ajustamento estrutural» sem fim, destruindo os patamares de bem-estar social que uma vida digna exige, não será altura de responder a esta União, adaptando o que ouvimos nos filmes americanos, que «o Estado social não negoceia com terroristas»? E, para isso poder ser feito, não é necessário preparar seriamente esta hipótese, esse «plano B»?
Com efeito, não basta ficar à espera de passar os sucessivos orçamentos do Estado por entre os pingos da chuva desta Europa de dois pesos e duas medidas. É ela que decide o que aceita e o que recusa, independentemente das «regras»: desde 2011 que o governo anterior incumpriu as metas do défice, mas não deixou de ser considerado «o bom aluno português»; a França anunciou recentemente que não vai cumprir o défice, porque vai gastar o dinheiro com a guerra e com políticas securitárias, e isso não teve efeitos nenhuns; a Grã-Bretanha fala em sair da União e a resposta é um acordo sobre as exigências que o governo de David Cameron fez para defender, em referendo, a permanência… Mas esta dualidade de critérios da União Europeia é feitio, e não é necessariamente fraqueza.
Enquanto não dermos forma e força ao debate colectivo sobre tudo o que ficou para trás, das questões mais fáceis de resolver (como a reposição das 35 horas) às mais difíceis (como a reestruturação da dívida para libertar verbas para o Estado social e o emprego), não deixará de haver outros planos para substituir a actual maioria governativa. Aliás, os meios de comunicação social estão já a difundir amplamente o «plano B» das forças da direita. Trata-se da mesma receita austeritária que não funcionou, mas que está longe de ter sido derrotada nos campos ideológico e dos poderes económico, financeiro e mediático. Não é por acaso que Pedro Passos Coelho, recém-eleito líder do Partido Social Democrata, prossegue a sua campanha de reconquista eleitoral aconselhando o primeiro-ministro António Costa a avançar já com «medidas adicionais»para «dar confiança» a Bruxelas e aos mercados, isto é, com um «plano B» feito de «austeridade adicional». É altura de lhe mostrarmos que «planos B» há muitos…
domingo 13 de Março de 2016
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