segunda-feira, 11 de abril de 2016

"40 anos da Constituição: recuperar a radicalidade" - Sandra Monteiro



Foi há 40 anos. A Assembleia Constituinte, reunida em plenário a 2 de Abril de 1976, aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa, que entraria em vigor a 25 de Abril do mesmo ano. No texto ficaram plasmados os direitos e liberdades fundamentais, bem como o princípio do primado do Estado de direito democrático. Da garantia da democracia política aos direitos económicos e sociais, os deputados constituintes apontavam o caminho: «a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno». Para o concretizar, os direitos materializavam-se em construções que se tornaram pilares do Estado social e de direito: o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a escola pública, a Segurança Social, as leis laborais, etc.

Mesmo com as sucessivas alterações de que foi alvo, o texto constitucional mantém elevados níveis de protecção dos mecanismos promotores de justiça social. Prova disso é que, quando muitos desses mecanismos foram atacados, o recurso para o Tribunal Constitucional permitiu que várias medidas governamentais tivessem de cair ou ser substituídas. Isso foi muito visível nos anos mais recentes, quando o projecto neoliberal iniciado da década de 1980 deu um salto de gigante com a imposição do regime de austeridade, em contexto de crise financeira internacional e de imposição da armadilha da dívida aos Estados.

De repente, os combates das várias esquerdas, que no essencial se limitavam a fazer retroceder medidas causadoras de regressão social, de mais desigualdades e mais recessão económicas, passaram a ser vistos, não como um simples regresso às bases de um programa social-democrático capaz de assegurar mínimos de decência social, mas como sonhos utópicos de radicais e extremistas (por estarem fora do consenso neoliberal).

É compreensível que, à direita, a resposta tivesse sido esta tentativa de estigmatização das oposições àquele projecto. No fim de contas, que outra defesa, senão o ataque, poderiam apresentar perante o fracasso retumbante das respostas que deram à crise iniciada em 2008? Como defender soluções que, não resolvendo nenhum dos problemas, acrescentaram muitos outros e perpetuam a instabilidade e as crises? Neste contexto altamente degradado, é também compreensível que as várias esquerdas tenham dado prioridade à defesa dos aspectos mais basilares da democracia, concentrando-se, nos termos do acordo para a governação actualmente em vigor, em devolver as condições de subsistência aos mais desprotegidos, repondo salários e pensões, e reinvestindo nos serviços públicos essenciais. Outra questão, ainda sem resposta, é saber se a União Europeia, e a sua arquitectura institucional e monetária, irá permitir esta governação alternativa, que recusa insistir na austeridade, ou se utilizará os instrumentos dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita.

Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem ao neoliberalismo limitar-se à reposição dos patamares anteriores à eclosão da mais recente crise? Não será esse o caminho para se ir, de crise em crise, de patamares mínimos em cada vez mais mínimos, até à derrota final? É certo que, hoje, lutar pelos mínimos sociais-democratas – importante avanço face a políticas sociais-liberais ou ultra-liberais – dá pelo menos tanto trabalho e exige pelo menos tanta mobilização à esquerda quanto noutros tempos terá exigido combater pelo socialismo. A isto se chamam tempos de retrocesso: parece que se luta cada vez mais, por cada vez menos.

Mas, se criássemos um Observatório da Radicalidade (não do radicalismo: isso é outra coisa e infinitamente menos interessante), que balanço faríamos da qualidade desta democracia constitucionalizada há 40 anos? A Constituição que temos tem-nos servido razoavelmente bem, mas a sociedade que construímos tem servido menos bem os princípios, os valores, os objectivos e as instituições que ela criou. Portugal já era antes da crise uma das sociedades mais desiguais, e entretanto a situação não terá melhorado. Nesta economia crescentemente financeirizada, globalizada e desregulada, os recursos de que precisamos para combater a pobreza, o desemprego e a precariedade são canalizados para pagar uma dívida insustentável, para alimentar fortunas que alimentam bolhas especulativas e que fogem para paraísos fiscais – fogem, note-se, com o nosso dinheiro, e não só com o seu. Competimos com uma produção global com contornos de quase escravatura, ou pelo menos crescentemente indigna em termos sociais e ambientais, e impedimos o cidadão comum de optar por consumos responsáveis pressionando-lhe os salários sempre para baixo. Trocamos soberania do Estado por formas de integração (europeia, regional, internacional) que colidem com políticas orientadas para o desenvolvimento económico, para a coesão social e territorial.

Passados 40 anos, a sociedade portuguesa não é apenas uma das mais desiguais. É também muito pouco democrática. Com efeito, já antes da crise, num estudo de 2008 [1], Portugal era apontado como um dos países menos democráticos da Europa (atrás, só a Bulgária, a Roménia, a Polónia e a Lituânia; no extremo oposto, a Suécia, a Dinamarca, a Holanda e a Finlândia). O que explica isto? O think tank britânico Demos aplicou um «Índice de Democracia Quotidiana» («Everyday Democracy Index») a vinte e cinco países europeus que permite olhar para outros aspectos da qualidade de uma democracia que não apenas a «democracia formal» (eleições e procedimentos) – aliás, a área em que Portugal está mais bem classificado. Os outros critérios usados pelo estudo estão agrupados nos seguintes indicadores: activismo e participação; deliberação e aspirações; democracia nas famílias; democracia nos serviços públicos; democracia nos locais de trabalho. São estes indicadores que relegam Portugal para os últimos lugares da tabela.

Forças políticas e uma sociedade mobilizadas para construir mais democracia e mais justiça social não podem deixar de colocar no debate público e na agenda política todas estas dimensões da democracia. Ao combate pelos direitos económicos e sociais, pelo direito ao trabalho, à habitação, à mobilidade e à cidade (analisados no dossiê que dedicamos nesta edição ao 40.º aniversário da Constituição), há que juntar os combates pela democracia nas empresas e demais locais de trabalho; pela gestão democrática nas escolas e nos estabelecimentos de ensino superior; pela participação dos utentes nos serviços públicos, como na saúde; pelo envolvimento de comissões de trabalhadores e utentes no funcionamento dos transportes públicos; pela valorização do papel e da organização democrática dos sindicatos e das associações; pelo aprofundamento do poder local, com orçamentos participativos e outras iniciativas; pelo incentivo a diferentes formas de propriedade, pondo em comum o que, se o não for, contraria os interesses das comunidades; pela desconstrução dos tradicionais papéis de género nas famílias e tantas outras formas de discriminação no espaço público e privado (género, etnia, etc.).

Celebrar a Constituição, 40 anos depois, é também recuperar uma radicalidade que ela inscreveu e que se perdeu pelo caminho ou não chegou a tornar-se prática. Não significa dedicar menos energias à defesa dos patamares que ainda há pouco dávamos como adquiridos: significa que temos ainda mais trabalho pela frente. A boa notícia é que, quando temos uma prática quotidiana suficientemente regular e ambiciosa para ganhar músculo democrático numa certa área, estamos de facto a contribuir para a boa irrigação dos tecidos de todo o sistema. Bem vistas as coisas, 40 anos é uma boa idade para apostarmos a sério na saúde desta nossa democracia.

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