domingo, 11 de março de 2018

"Os circuitos do dinheiro na saúde" - Isabel do Carmo


O Conselho Nacional de Saúde (CNS) é uma estrutura oficial, tal como a Entidade Reguladora da Saúde, com sede no Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, e tem alguma independência do Ministério da Saúde. Este Conselho foi criado para consulta do governo, mas também para tornar públicos os dados recolhidos, no sentido de autarquias, associações e público em geral tomarem conhecimento dos seus estudos, participando de um dever de cidadania.. Em Outubro de 2017, o CNS publicou um estudo sobre os "Fluxos Financeiros do Serviço Nacional de Saúde (SNS)", que analisa o estado da Saúde em Portugal. O objectivo foi observar o desenho geral da estrutura financeira, as fontes de financiamento e a verdadeira árvores de fluxos. Utilizou dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) que gere de forma central os recursos humanos dentro do Ministério da Saúde e disponibiliza ao público dados sobre os custos nas várias áreas.

Os autores recorreram à Organização Mundial de Saúde (OMS) e à Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), colhendo desta última um dado que diz mais sobre a despesa em saúde do que a percentagem do produto interno bruto (PIB) geralmente usada. Esse dado é o custo "per capita" (com paridade com o poder de compra) que, pelo menos desde 2000, se tem sempre situado abaixo da média europeia: 2423,3 dólares em 2016, sendo a média europeia de 3549,4. Vistas as percentagens do PIB, a despesa aproximou-se da europeia (9 contra 8,9), mas a parte pública dessa despesa veio a distanciar-se desde 2010 até 2016, o que significa que foram as famílias a arcar com a diferença. Em 2015, a fonte financeira a partir do Orçamento Geral do Estado foi de 57,3% do total da despesa corrente em Saúde (INE, Agosto 2017). Nestes anos, as famílias participavam com 27,7% dos custos (mais do que outros países europeus), o que em período de crise pesou muito no seu sofrimento. Os subsistemas contribuíram com 5,3% como agente financiador. Embora se possa ter uma percepção pública diferente, o contributo das associações sem fins lucrativos foi apenas contributo residual.

Durante a crise, e ainda hoje, as famílias suportam a parte não comparticipada dos medicamentos e uma percentagem dos exames. Em relação aos medicamentos, aqueles de que depende imediatamente a vida, como a insulina, são gratuitos, ou largamente comparticipados, como os antibióticos, e os que se destinam a doenças crónicas, como a hipertensão arterial ou a diabetes, têm uma comparticipação grande. Os critérios são diferentes, e em alguns casos discutíveis, para os medicamentos que não se enquadram nestas categorias. Os cuidados domiciliários, indispensáveis para muitas famílias, deveriam ser todos prestados pelos cuidados ao domicílio dependentes dos cuidados primários, ou seja, centros de Saúde e Unidades de Saúde Familiar (USF), onde os enfermeiros têm um papel determinante. Mas muitas vezes a cobertura falha, o recurso às Misericórdias tem de ser feito, com o seu cariz de "solidariedade" e a articulação de base - centro de saúde, junta de freguesia, instituição de solidariedade - a funcionar mal, sobretudo nos grandes centros urbanos.

Os cuidados dentários são um dos maiores problemas do SNS. O "cheque-dentista" abrangeu sobretudo crianças e jovens até aos 18 anos, mas aquilo que foi uma medida de emergência tornou-se uma das formas de fluxo do público para o privado. Em 2016, o Estado pagou em cheques-dentista 13 154 175 de euros, que incluíram crianças e jovens, grávidas, portadores de VIH-sida e projecto de intervenção do cancro oral. Em 2009 pagara menos de um terço (4 005 400 euros). As consultas hospitalares de Estomatologia têm de ser reservadas para os casos de última instância, e não as questões dentárias correntes, o que significa que os adultos ficam sem cobertura. Mesmo em consultas hospitalares, os materiais de prótese saem do bolso do utente.

De acordo com os dados da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), durante o primeiro semestre de 2017 o ramo doença aumentou 12,3%, face ao mesmo período do ano anterior, o que pode ser um indicador da dificuldade de acesso ao SNS. Provavelmente foi quase tudo para os prestadores privados. E as facturas que entram nos hospitais por via das seguradoras, nos casos de trabalho ou acidentes, tornam-se muitas vezes dificilmente cobráveis.

Entra no SNS e para onde é que sai?

Percebendo um pouco as fontes de financiamento do SNS, interessa saber para onde é escoado o dinheiro. Em 2015, o grande peso financeiro estava nos hospitais públicos, embora tenha havido um corte nesse sector de 300 milhões de euros durante a crise, primeiro imposto pela Troika e depois pelo governo. Este corte foi ter reflexos, que se sentirão durante anos, nos equipamentos e na sua manutenção, nas dívidas e no pessoal. Os custos nos cuidados domiciliários representavam em 2015 uns escassos 0,3% e os cuidados preventivos 1,1%, níveis que se têm mantido ao longo de anos e por vários governos, apesar dos discursos. A narrativa de que "o melhor é a prevenção" muitas vezes é só moralista e dirigida à responsabilidade individual na mudança de hábitos de vida, esquecendo que o grande factor a intervencionar de forma política é o ambiente, em sentido lato, criado pelo colectivo social. O SNS, que em Portugal todos dizem defender, evitando separar as águas em termos de conceitos de sistema de saúde, apenas dispõe de 1,1& de verbas para cuidados preventivos.

Os cortes nas despesas específicas em cuidados curativos hospitalares atingiram sobretudo os hospitais públicos, tendo o pagamento a hospitais privados vindo a crescer, ao ponto de passar de cerca de 389 milhões de euros em 2011 para cerca de 554 em 201, incluindo as PPP. Ou seja, não houve poupança quando os fornecedores de serviços foram privados. Assim se compreende a multiplicação de instituições privadas de prestação de serviços de Saúde. As instituições privadas de Saúde sobrevivem com o que lhes é pago pelo SNS em venda de serviços de saúde e com o que lhes é pago pela Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE); não com os seguros e os pagamentos das pessoas de altos rendimentos. Em 2017, o número de empresas privadas de Saúde com internamento era de 169, com 15 947 de pessoal e um valor de negócios de 1486 milhões de euros. No privado, as camas de internamento cresceram, enquanto as do sector público decresceram, o mesmo sucedendo com as consultas externas e as grandes e médias cirurgia (INE, 2017).

Em 2017, a ADSE pagou 394 milhões de euros a hospitais, clínicas e laboratórios privados. Daqui se depreende os protestos da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada quando a ADSE anunciou que ia baixar as tabelas de pagamentos. Note-se que quando os doentes beneficiários da ADSE entram na rede pública, aquela nada paga ao Estado, porque ao SNS têm direito como qualquer cidadão.

Uma das grandes facturas de pagamento de serviços externos a cargo do SNS é a da realização de hemodiálises, que em 2016 obrigou o Estado a pagar cerca de 253 milhões de euros. Também neste caso cabe aos hospitais públicos uma parte mais complexa - o estabelecimento de vias vasculares de acesso - e depois o SNS paga aos privados as sessões de hemodiálise.

Quanto à compra de serviços externos a privados, pagos pelo SNS, são sobretudo meios auxiliares de diagnóstico, sobressaindo, em 2016, as análises clínicas (cerca de 87 milhões), a radiologia (cerca de 87 milhões), a fisioterapia (cerca de 67 milhões) e as endoscopias gastroenterológicas (cerca de 32 milhões).

Quando os hospitais públicos têm uma lista de espera de cirurgia que ultrapassa o estabelecido para aquela patologia, podem fazer um cheque-cirurgia para o doente ser operado numa rede de privados estabelecida. Em 2015, os custos com os cheques-cirurgia foram de cerca de 84 milhões de euros. Quanto aos custos com medicamentos, diminuíram cerca de 500 milhões entre 2010 e 2015 (INE, 2017), o que deve ter pesado na crise sofrida pelas farmácias nesse período.

Quanto à Rede de Cuidados Continuados, em 2006, e depois em 2009, ela teve um grande impulso; decresceu em 2013 e cresceu de novo em 2016. A responsabilidade dos custos desta rede é partilhada entre o Ministério da Saúde e o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, sabendo-se como faltam camas de internamento. Os cuidados primários, centros de Saúde e USF, a cargo das Administrações Regionais de Saúde (ARS), sofreram uma redução de despesa de 12,5% de 2010 para 2011, o que afectou o seu funcionamento, sobretudo ao nível pessoal. A organização em Agrupamentos, que tinha sido anterior, poderá ter reduzido a despesa, o que foi o principal objectivo da sua constituição, mas eles não têm autonomia financeira e a gestão de pessoal e de funcionamento que existia nas antigas unidades foi perdida, a favor de uma gestão vertical e mais distante.

O que entra e o que se gasta

De forma crónica, e percepcionada como quase natural, há ao longo dos anos um subfinanciamento da saúde, sabendo-se de antemão que se vai gastar mais do que se recebe. O mesmo se passa com a assinatura dos Contratos Programa, que foram um bom projecto para estabelecer o exercício anual, mas também neste caso se sabe antecipadamente que não vai haver recursos para essa produção. Em 2012 e 2013 houve orçamentos rectificativos, porque as dívidas a fornecedores já eram muitas. Em Dezembro de 2016 havia cerca de 32 milhões de euros de dívida mensal em média, sendo que cerca de 20 milhões estavam em atraso e cerca de 12 milhões eram dívida vencida. Em Agosto de 2017, o total da dívida com mais de 90 dias já estava em 1145 milhões de euros no total. Este peso, que se arrasta e ocupa as administrações, esta suborçamentação crónica, dificulta negociações de preços, impede projectos de fôlego plurianuais e planos ambiciosos em equipamento e pessoal, com rentabilidade a médio prazo. Ora, a falta de resposta nos serviços públicos provocada pela suborçamentação vai depois ter como consequência a necessidade de recurso a privados; ou seja, o que falta num lado paga-se no outro, que pela própria natureza tem de ter lucro.

A discussão no presente situa-se antes de tudo neste subfinanciamento crónico, que se agravou durante a crise e se mantém. É preciso pensar com ousadia na parte que diz respeito ao SNS dentro do Orçamento do Estado, abandonando esta hipocrisia de se fingir que se vai gastar a um nível que não é o verdadeiro, porque não pode ser. O estabelecimento dum orçamento real tem de ser discutido nos detalhes pelos vários intervenientes do SNS, sem pretensões de serem bons alunos por serem poupadores. Poderá perguntar-se a cada unidade como seria para funcionarem a pensar na eficiência, e não no peso das dívidas. O bom planeamento a este nível dá resultados a curto prazo. Por exemplo, o facto de alguns Agrupamentos de Centros de Saúde terem hoje aparelhagem para um rastreio de renitopatias diabéticas vai evitar cegueiras e/ou tratamentos com custos vultuosos, se os hospitais de referência responderem de imediato aos doentes referenciado. Os custos em equipamento e em técnicos não têm comparação com a poupança financeira e humana. Investiu-se e poupou-se, como aconteceu em 2008-2009 com o plano de cirurgia das cataratas.

Quanto à própria estrutura dos custos, é de grande evidência a necessidade de gastar mais nos cuidados primários. As USF foram um projecto de Constantino Sakellarides ainda como director-geral da Saúde no ministério de Maria de Belém Roseira, período em que chegou a haver uma unidade experimental. Correspondem a um padrão de autonomia de gestão financeira, que implica todo o pessoal; há incentivos de acordo com os resultados e os doentes são seguidos de modo a prevenir ou melhorar doenças crónicas e evitar episódios agudos.

As USF têm duas categorias, A e B, sendo que a primeira é experimental e a segunda provém da primeira e autonomiza-se. A unidade é criada por candidatura dum médico de Medicina Geral e Familiar que levará consigo a sua carteira de doentes. De 2006 a 2010, foram criadas 129 USF modelo A e, de 2008 a 2011, passaram 136 a modelo B. De 2012 a 2015, só 72 passaram a modelo B. No ano de 2016 passaram a USF modelo B 25 unidades. No total temos 479 activas, 246 modelo A e 233 modelo B. A região Norte tem mais do dobro de USF activas do que Lisboa e Vale do Tejo. Ora, após a candidatura com todos os seus passos administrativos e técnicos é necessário um despacho conjunto dos Ministérios da Saúde e das Finanças. Neste momento há 29 candidaturas do modelo A e 48 do modelo B, mas o que falhou ao longo de 2017 foi o despacho conjunto... Ora, para lá do subfinanciamento crónico, há que discutir com as Finanças, que não são técnicos em Saúde, os benefícios da abertura de USF, demonstrando os resultados com números na mão, que é o que se tem de fazer num governo em que a governação é global e deve ser um colectivo com propósitos estratégicos.

A poupança dentro do SNS tem de considerar a relação do serviço público como cliente dos privados. Os números mostram que o grande custo não são as parcerias público-privadas (PPP), mas sim a compra de serviços aos privados. O combate às PPP tem sido o maior cavalo de batalha, mas estas têm sido escrutinadas em termos qualitativos e quantitativos. Claro que têm a sua lógica de negócio e por algum lado hão-de ganhar. Mas o grande negócio para os privados é a venda de serviços e aí tem de haver uma reflexão, pois se as instituições públicas forem suficientes não terão de dar lucro a privados. Estamos a falar de meios auxiliares de diagnóstico: análises, radiologia, endoscopias. Ao nível de análises, as instituições que ousaram instalar postos de colheita nos Centros de Saúde para as análises serem feitas nos hospitais, o que foi o caso do Centro Hospitalar da Guarda e do Centro Hospitalar Lisboa Norte, foram efectivamente combatidas pela Entidade Reguladora da Saúde, que entendeu que se estava a prejudicar os privados. Interessante entendimento dum organismo criado pelo Estado, embora com funcionamento independente... Surgiram até providências cautelares em reacção à existência desses postos de colheita. Ora, os hospitais têm capacidade para responder às suas necessidades e às dos centros da sua área. Já o mesmo não se passa em relação à radiologia. Neste caso os hospitais têm excelente qualidade, mas não têm capacidade de resposta em termos quantitativos, sobretudo em Ressonâncias Magnéticas, mas também em avaliações vasculares por imagem, e os doentes não podem ficar sem fazer os exames.

Temos esperança que o projecto do Hospital de Lisboa Oriental, agora assim chamado após ter o nome de Todos-os-Santos, em evocação do antigo hospital do Rossio destruído pelo Grande Terramoto, contemple as carências  dos actuais hospitais. O número de camas (875) foi calculado de acordo com as necessidades da área directa e indirecta, mas estas só podem atingir este nível se forem aumentadas as camas de convalescença e de cuidados continuados, e se os cuidados domiciliários forem garantidos.
É que alguns doentes não podem ter altas para o vazio, para famílias sem recursos de acompanhamento. No caso deste hospital, a PPP só vai funcionar para a construção, que será de 415 milhões, a pagar durante 30 anos Toda a gestão será pública. Com um espaço racionalizado dentro das modernas necessidades, o hospital ter a capacidade para todas as necessidades dos doentes, em termos de exames e tratamentos e não dependerá de compras de serviços clínicos externos. Deste modo os serviços privados não serão complementares do SNS, como se diz habitualmente, porque os serviços públicos terão resposta completa. Os serviços privados serão suplementares para quem queira fazer essa escolha, por razões de hotelaria ou outras que não tenham a ver com a qualidade clínica. Resta saber se o SNS e os seus responsáveis farão uma opção por esta tendência, de que o Hospital Oriental pode ser modelo, ou se continuarão a procurar comtemporizacões, ou os chamados consensos, em que o lucro cresce e o SNS rebenta pelas costuras.

Isabel do Carmo

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