A União Europeia nunca deixa durar muito os enganos de alma ledos e cegos de quem se esquece da sua matriz neoliberal. Desta vez o sossego foi interrompido pelo comissário europeu para os Assuntos Económicos e Financeiros, Günther Oettinger, que espera que «os mercados ensinem os italianos a votar bem». O desprezo pela democracia, e em particular pelos mecanismos democráticos que subsistem nos quadros nacionais e locais, continua bem vivo numa instituição sempre disposta a impor governos técnicos, referendos de desgaste e outras perversões da manifestação da vontade política dos cidadãos. Mas uma instituição da globalização neoliberal nunca vem só. Na mesma altura, o chefe de missão para Portugal do Fundo Monetário Internacional (FMI), Alfredo Cuevas, veio incentivar o governo português a fazer mais poupanças, indicando o caminho dos cortes nos custos com pessoal na função pública. Bem podem os portugueses continuar a sentir na pele as consequências do desinvestimento prolongado no Estado social, com a degradação persistente do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da educação pública ou dos transportes públicos, que para o FMI ainda não chega.
Mas a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) não lhes ficou atrás: Álvaro Santos Pereira, seu actual economista-chefe interino, aproveitou a divulgação do «Economic Outlook» de Maio para advertir contra os perigos da reversão das reformas laborais feitas no passado, como a eliminação do banco de horas individual. Por «passado» leia-se o período da Troika, quando ele era ministro do Emprego de Pedro Passos Coelho. Desprezo pela democracia, corrosão do Estado social, ataques aos direitos laborais: o neoliberalismo e as suas instituições têm as prioridades bem definidas.
Tudo isto aconteceu no fim de Maio, em cima de uma reunião da concertação social que voltou a cumprir a missão de dificultar a aprovação de medidas protectoras do trabalho e da economia. O acordo que o governo assinou com as confederações patronais e com a União Geral dos Trabalhadores (UGT) de facto acabou por não contemplar o desaparecimento do banco de horas individual, apesar de isso constar da proposta inicial. A contestação por parte dos patrões, desde logo da grande distribuição, a que se juntou a pressão internacional, teve os seus efeitos e este dispositivo continuará em vigor por mais um ano. Mas há mais razões para o aplauso dos patrões, e para se admitir que as alterações negociadas podem passar com os votos dos partidos de direita no Parlamento. O acordo não tem apenas medidas negativas. Mas no cômputo geral, e ao desistir de muitas que eram positivas, fica francamente aquém do que era necessário para combater a precariedade e repor direitos laborais mínimas. Do alargamento dos contratos de muito curta duração à ineficácia da taxa que deveria desincentivar a contratação a termo, passando pelo aumento do período legal de experiência de jovens e desempregados, o emprego continua a ser fortemente desprotegido e a contratação colectiva a ser uma miragem [1]. Mas nada disto interessa ao chefe de missão a Portugal da Comissão Europeia, Carlos Martinez Mongay, que por estes mesmos dias apenas alertou contra futuros aumentos do salário mínimo, por eles desincentivarem os trabalhadores de aumentarem as suas qualificações. Não sendo estes delírios neutros, mas ideológicos, não seria altura de, em vez de sucumbir às suas pressões, os combater como adversários políticos que são?
É que, repita-se, tudo começa no trabalho. As injustiças e as desigualdades que deixarmos permanecer ali vão repercutir-se em toda a vida e em todo o tecido social. Os níveis de rendimento e as condições laborais são determinantes para os níveis de instrução, de saúde e de pensão quando chega a reforma. Desproteger o mundo do trabalho e desinvestir da provisão pública dos serviços universais é que cria o terreno propício à descrença na capacidade protectora dos sistemas públicos que, por sua vez, alimenta os negócios privados. O problema está muito mais aqui do que numa demografia sobre a qual se pode actuar, desde logo com outras políticas migratórias (ver nesta edição o dossiê «Sobressalto demográfico na Europa»). Desemprego e carreiras contributivas curtas, intermitentes e com descontos necessariamente reduzidos, a par de cortes profundos nas pensões médias e elevadas (27% em média na função pública nos anos da Troika, estima-se), criam, depois, o ambiente favorável ao surgimento de propostas que subvertem os sistemas de pensões assentes na repartição.
Num artigo publicado neste jornal, há exactamente quatro anos, com o título «Estratégias de desmantelamento dos sistemas públicos de pensões», Maria Clara Murteira alertava para as várias formas que estavam a desenhar-se de aprofundar essa subversão. Afirmava a autora que, «depois da crise financeira global, deixou de haver ambiente propício à privatização das pensões. Por um lado, mudou a percepção do risco de investimento no sector financeiro. Por outro lado, muitos Estados passaram a enfrentar graves dificuldades de financiamento, o que inviabiliza o projecto de privatização das pensões». Aparentemente, os apetites privados que olham para as contribuições dos trabalhadores como uma oportunidade de negócio, e que não se conformam com aquelas duas dificuldades do «pós-crise», estão a conseguir contornar o problema. Com a ajuda decisiva das instituições da União Europeia.
Uma investigação do jornalista Paulo Pena publicada com o título «Bruxelas cria fundo de pensões privadas após pressão da BlackRock» [2], vem agora revelar como a Comissão Europeia, sem ter mandato político para uma decisão desta magnitude, se prepara para fazer aprovar no Parlamento Europeu e no Conselho Europeu a entrega de um fundo de pensões privado europeu, transfronteiriço, designado Plano Europeu de Pensões Pessoais (PEPP), à empresa norte-americana BlackRock. Esta empresa é uma das maiores gestoras mundiais de fundos de pensões, que usa os biliões de dólares recolhidos com as pensões para adquirir participações significativas das maiores empresas mundiais (em Portugal, em 14 das empresas cotadas no índice bolsista PSI20, incluindo a EDP, o BCP, a NOS, a Jerónimo Martins e os CTT).
Nas ruínas do trabalho e do Estado social, a União Europeia inventa mais uma forma de satisfazer através do quadro europeu os negócios privados que, sem ela, teriam dificuldade em impor-se neste espaço. É a actuação da União que prepara as tragédias futuras. Neste contexto de maior consciência cidadã do risco financeiro e de indisponibilidade orçamental dos governos nacionais (mesmo os neoliberais) para avançarem para a privatização dos seus sistemas de pensões, empresas gigantescas como a BlackRock precisam de uma estrutura supranacional como a União Europeia para expandir o seu negócio. Se não forem detidas a tempo, elas vão crescer com os seus cantos de sereias e, quando os seus investimentos forem mal sucedidos, os pensionistas que lhes tiverem entregado as suas poupanças vão ver-se sem qualquer protecção na reforma. Já no início do século foi assim com o escândalo da Enron, uma empresa que também cresceu à sombra da desregulamentação neoliberal e do tráfico de influências com o poder [3]. Será realmente surpreendente que destas ruínas surja também na Europa o descrédito na própria democracia?
quarta-feira 6 de Junho de 2018
Notas
[1] Ver Catarina Almeida Pereira, «O que vai mudar na lei laboral? As 10 principais medidas do acordo», Jornal de Negócios, 31 de Maio de 2018.
[2] Diário de Notícias, 1 de Junho de 2018. Ver também Paulo Pena, «BlackRock: a empresa que está a mudar capitalismo», Público, 6 de Maio de 2018.
[3] Ver Thomas Franck, «As mil e uma vigarices da Enron», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Fevereiro de 2002.
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