terça-feira, 8 de janeiro de 2019

"Os irmãos escolhem-se" - Sandra Monteiro


A democracia é um espaço ou um projecto? Um espaço no sentido de receptáculo que pode conter tudo e mais alguma coisa, sem definir perímetros do que é ou não aceitável, sem estabelecer hierarquias nem prioridades? Ou é um projecto no sentido de uma construção, de uma aferição permanente, e disputada, do que contribui e do que não contribui para que a acção colectiva esteja ao serviço do bem-estar da maioria? Vivemos há quase 40 anos em regime neoliberal, mas temos tendência a esquecer que o que pensamos, e não apenas as condições em que vivemos, é formatado por esse regime. O neoliberalismo tem a sua própria concepção de democracia; não é a comunista, não é a socialista, e tem-se livrado o mais possível da social-democrata. Apresenta a democracia como um espaço plano, neutro e prazenteiro, onde tudo é flexível e flui, onde não há lugar para organização nem selecção, e onde toda a ocupação dos lugares em que se actua surge espontaneamente, em rede, de forma horizontal, participada.

Nesta perspectiva neoliberal, tudo é livre: o comércio é livre, a finança é livre, o trabalho explorado é livre, o poluidor é livre, a expressão sem limites é livre. Mas não estamos perante aquela liberdade que é geneticamente indissociável da igualdade e que pode vir a construir uma fraternidade a sério. O que ela significa é liberalização do comércio, liberalização da finança, liberalização do trabalho, liberalização da destruição do planeta, liberalização da liberdade de expressão. E o espaço em que tudo tem igual valor, pertinência, legitimidade e direito a ser dito, escrito ou feito é uma democracia capturada pelo projecto que ainda hegemoniza esse espaço. Uma democracia de baixíssima intensidade, pobre e infantilizada, em que se torna irrelevante assumir a responsabilidade pelas escolhas que se faz, porque a montante se desvaloriza o trabalho de memória e de estudo por trás desses escolhas, e a jusante se determina que o presente e o futuro são como são porque sempre foram assim.

Os cidadãos que foram deixados para trás durante estas décadas, que foram também as da neoliberalização da social-democracia e da progressiva irrelevância, desde logo europeia, de muitas forças políticas e sociais à esquerda, têm dificuldade em vislumbrar um futuro melhor. Vítimas da contradição entre o prometido e o oferecido pelos neoliberais, atentos ao rumos autoritários e fascizantes em vários pontos do mundo, e temendo a próxima crise, os cidadãos que foram deixados para trás estão à procura de tradução política para as suas preocupações e sonhos. A mensagem parece simples: querem uma vida melhor, com reivindicações que vão do material ao simbólico, e apontam culpados pelo estado a que chegaram.

A degradação da democracia e as amálgamas e os aproveitamentos já visíveis, não tornam fácil responder bem a todos estes protestos. Mas há respostas. A primeira afirma que não há democracia se as políticas públicas não derem prioridade à justiça social; se não forem reconstruídos Estados sociais robustos, com serviços públicos de qualidade, universais e tendencialmente gratuitos; se não forem impostas limitações sérias à acumulação privada de riqueza, à mercadorização de toda a sociedade e à financeirização da economia; se não se compreender que, sem estas políticas, não só não há justiça social, como também não haverá um planeta em que todos possamos viver.

A segunda resposta, que é indissociável da primeira, é um combate à própria neoliberalização da democracia política, nas suas várias dimensões, a começar pela própria ideia de que ser democrata é aceitar que tudo tem o mesmo valor só porque pode ser dito, e que não há responsabilidades a assumir pelas escolhas do que se diz e faz. Diz-se muitas vezes, recuperando uma formulação de Karl Popper, que as democracias convivem com o «paradoxo da tolerância»: elas estariam sujeitas, no limite, a sofrer as investidas dos intolerantes. Mas será isto um problema? Por que motivo haveria a democracia de ter como objectivo ser de uma tolerância sem limites, e muito menos de apenas introduzir limites quando chega a situações limite? Se a democracia é uma construção, então ela é uma constante (re)definição do que tolera ou não. Não é tanto um «paradoxo» de um espaço, onde tudo «idealmente» seria aceitável, mas uma prática corrente no quotidiano de um projecto que é conflitual, e envolve relações de poder e de forças. Esta prática é, por isso, uma tarefa de todos os cidadãos, e deve apoiar-se na memória histórica e nos especialistas (constitucionalistas e outros) que reflectiram e estatuíram sobre o tema, porque eles acumularam um saber que obedece a regras não arbitrárias, que a todos importa conhecer, e no quadro de mecanismos escrutináveis.

Foi a própria neoliberalização da democracia política que nos fez esquecer que a vida normal em democracia é assim. Aos poucos substituiu o conflito que permite aferir escolhas democráticas por uma «ideologia do consenso», porque se sabe que as verdadeiras decisões são tomadas noutro lugar, onde está o poder. A democracia neoliberalizada oferece-se à maioria dos cidadãos como um espaço, enquanto reserva a sua dimensão de projecto para os centros de poder e de dinheiro. Por vezes até surgem cidadãos com responsabilidades públicas e políticas que corporizam esta concepção de que ser democrata é habitar este espaço neutro, horizontal, contraditório e consensual, tolerante até à exaustão, que se quer mimetizado pelos cidadãos-espaço.

O presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa é um desses casos. A sua mensagem de Ano Novo voltou a ser um exemplo de como é possível dizer tudo e o seu contrário, agradar à esquerda e à direita, dificultando qualquer crítica. Na democracia-espaço, o presidente pode falar de «justiça social, combate à pobreza, correcção das desigualdades» para a seguir chamar a atenção dos que opinam, se manifestam e fazem greve, para o «respeito» devido aos «que podem sofrer as consequências dos vossos meios de luta». No cidadão-espaço cabe tudo, da evocação de um caminho de justiça social até à insidiosa crítica aos que, todavia, sabem que não há caminho de justiça social sem lutas que prejudicam outros. Tendo a democracia regras para manter essas «consequências» em limites socialmente aceites (serviços mínimos, etc.), não se sabe o que quereria o presidente dizer.

E o que dizer das suas declarações sobre o encontro com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro? Salientando o «tom fraternal» do encontro, e chamando-lhe uma «reunião entre irmãos», deu uma caução calorosa e de proximidade a um apoiante da ditadura militar e da tortura, que é racista, homofóbico e misógino, e que representa uma formação de extrema-direita enterrada em casos de corrupção. Tudo se desculpa porque podia estar a pensar na «empatia natural»com o povo brasileiro e porque há relações, desde logo comerciais, a preservar? Na democracia-espaço, sim, vale tudo. Na democracia-projecto é que estas posições se combatem. E os irmãos escolhem-se.

Escolhem-se na política como se escolhem na comunicação. Neste início de ano, uma televisão resolveu convidar Mário Machado, defensor de ideias fascistas, nacionalistas, racistas, xenófobas. Fê-lo em dois canais (TVI e TVI24), juntando ao primeiro programa uma «sondagem de rua» em que perguntava «precisamos de um novo Salazar?». O convidado é um criminoso violento e reincidente, que foi condenado pela participação nos actos que levaram à morte, por ser negro, de Alcindo Monteiro, além de muitas outras condenações por sequestro, roubo, extorsão, ofensas corporais, etc. Mário Machado foi ouvido sem enfrentar qualquer contraditório sobre o seu «auto-branqueamento» e sobre a sua pretensa «reinserção social», que os factos desmentem, após dez anos na prisão. Salazar foi criticado, Machado não. Quem só o conhecer deste dia, com que impressão ficou dele? Os intervenientes defendem-se com a «liberdade de expressão», afirmando a direcção da estação que «o debate entre diferentes correntes de opiniões (…) faz parte de uma sociedade democrática, plural e tolerante». Na democracia-espaço, onde cabe tudo e não se assume responsabilidades pelas escolhas, sim. Na democracia-projecto, estas posições combatem-se. Cada um que escolha os seus irmãos.


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