segunda-feira, 8 de abril de 2019

"O cordão sanitário" - Serge Halimi


Há décadas que a força eleitoral da extrema-direita serve de apólice de seguro aos liberais de esquerda e de direita: qualquer burrico moderado pode ser o primeiro na linha de chegada desde que se oponha a uma formação política inadmissível, irrespeitável, irrespirável. Nas eleições presidenciais francesas de 2002, o resultado de Jean-Marie Le Pen estagnou entre as duas voltas, passando de 16,8% para 17,8%. Ao mesmo tempo, o do seu rival Jacques Chirac subiu em flecha, de 19,8% para 82,2% dos votos expressos. A mesma operação permitiu a Emmanuel Macron vencer as eleições em 2017, apesar de o fazer com uma margem menos espectacular.

Os liberais contam voltar a fazer contra a esquerda o que conseguiram fazer contra a extrema-direita. Estão por isso a tentar construir, contra o crescimento eventual daquela, um muro dos valores que a torne, por sua vez, suspeita. Procuram desta forma obrigar os que já não suportam mais as políticas do poder a, apesar de tudo, acomodarem-se a elas, de tal modo os seus mais fortes opositores seriam ignóbeis.

Por pura obra do acaso, a calúnia contra uma esquerda que se teria tornado anti-semita está a surgir ao mesmo tempo em França, no Reino Unido e nos Estados Unidos. Uma vez definido o alvo, basta encontrar uma opinião desastrada, excessiva ou abjecta na página do Facebook, ou na conta do Twitter, de um dos membros da corrente política que se quer desonrar (o Partido Trabalhista britânico tem mais de 500 mil membros). A seguir a comunicação social serve de retransmissora da mensagem. Também se pode tentar destruir um adversário imputando- lhe uma fantasia anti-semita que lhe é estranha – do tipo: a democracia, o jornalismo e a finança estão ao serviço dos judeus – assim que este adversário formule uma crítica à oligarquia, à comunicação social ou da banca.

E aí vamos nós. «Se [Jeremy] Corbyn se instalasse em Downing Street, poder-se-ia dizer que, pela primeira vez desde Hitler, um anti-semita governa um país europeu», assegura o académico Alain Finkielkraut. A situação é igualmente ameaçadora nos Estados Unidos pois, segundo o presidente Donald Trump, com a eleição para o Congresso de vários parlamentares de esquerda, «o Partido Democrata tornou-se um partido anti-israelita, antijudeu». «Os democratas detestam o povo judeu», acrescenta ele. Bernard-Henri Lévy, por seu lado, acaba de comparar o deputado e jornalista francês François Ruffin tanto a Lucien Rebatet, autor do panfleto anti-semita Les Décombres (Os Escombros), como a Xavier Vallat, comissário-geral para as questões judaicas durante o regime de Vichy, e a Robert Brasillach, colaborador fuzilado quando chegou a Libertação. O fantasista preferido da comunicação social teria mesmo encontrado em François Ruffin uma «filiação consciente ou dissimulada com a prosa do Gringoire», um semanário que destilava ódio anti-semita e que, com uma das suas campanhas de difamação mais famosas, levou ao suicídio um ministro da Frente Popular.

Judeus foram assassinados em França e nos Estados Unidos por anti-semitas. Um drama desta dimensão não deveria servir de arma de arremesso ideológico a Trump, nem ao governo israelita, nem a intelectuais falsários. A construir um cordão sanitário, que seja um que nos proteja antes daqueles que imputam aos seus adversários uma infâmia de que, sabem bem, eles estão inocentes.


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