Lisboa vai-se degradando. E é com essa cidade que as pessoas se confrontam. No próprio acesso ao parque de estacionamento estava arrumadinho um automóvel. Bizarro parque este, que nem trata de desimpedir a sua entrada! Mas o pior estava para vir. Ou seja, o pior aconteceu quando abri a porta do carro e, por momentos, acreditei ter estacionado num urinol. Como os jornais não têm cheiro, dificilmente se pode explicar o odor que emanava do chão do dito parque de estacionamento. Olhando para a cabine onde se efectuam os pagamentos, percebi que a utilização intensiva como WC daquele parque vai deixando vestígios no chamado mobiliário urbano. Tudo aquilo tem um aspecto mal cuidado e sujo. Este parque de estacionamento fica em Lisboa, mais precisamente em Benfica, é gerido pela Emel, que não considera ser sua competência limpar o parque, ordenar o estacionamento ou fazer algo mais do que manter em funcionamento as cancelas que asseguram o pagamento.
E ali, no meio daquele cheiro nauseabundo, olhando as cancelinhas que subiam e desciam ao ritmo dos pagamentos, confirmei algo de que já suspeitava: as alfaces são um ícone ultrapassadíssimo. Não que os lisboetas tenham desistido de comer alfaces. Antes pelo contrário, comem-nas com aquele entusiasmo insuperável e insuportável dos devotos da religião da saúde. Simplesmente, as alfaces agora são apenas alfaces. O que neste século XXI simboliza os lisboetas não são as alfaces. É sim a Parada do Vento. Dir-se-á que no meio daquele pivete o vento seria uma bênção. Certamente. Mas não só ali. O vento mostra-nos melhor que mil palavras a estranha forma de vida da autarquia lisboeta.
Para quem não se recorde, a Parada do Vento foi anunciada em Fevereiro do ano passado. Começou por ter uma designação apropriadamente em inglês, Wind Parade 2008, e constava de 25 torres eólicas, com a altura de quatro andares, que iriam ser instaladas junto da segunda circular, no Jardim Amália Rodrigues, no Parque Recreativo dos Moinhos de Santana, no Alto da Serafina, no Parque da Belavista, na Avenida da Índia, nos Olivais, na Piscina Municipal da Boavista, na Avenida Calouste Gulbenkian, junto à Cordoaria Nacional e na Avenida Padre Cruz. A Wind Parade surgia apadrinhada pelas European Wind Energy Association, Sustainable Energy Europe e Associação Portuguesa de Energias Renováveis. Os press releases acrescentavam que "o evento Wind Parade 2008 se caracterizava por ser uma acção de comunicação de grande visibilidade e impacto assente na colocação de microturbinas eólicas a produzir electricidade". Um road-show pelas escolas de Lisboa propunha-se obviamente sensibilizar as crianças "para as questões das alterações climáticas e eficiência energética". O vereador Sá Fernandes sabia de fonte certa que cada turbina, por ano, pouparia até 2,15 toneladas de CO2 e daria um rendimento de 2184 euros. Em Março, as turbinas já estavam reduzidas a quinze. Depois descobriu-se que Lisboa é ventosa, mas, ó capricho de Bóreas e seus irmãos, os ventos da cidade livraram-nos no passado de várias pestes mas não correm de feição a produzir energia. E logo a Wind Parade ficou transformada num evento simbólico em que se colocariam apenas algumas turbinas, quais instalações em espaços públicos, para que o cidadão a elas se habituasse. Mas nem isto sobrou. Simplesmente não aconteceu nada. Ou seja, aconteceu o costume: o estudo preciso que dava credibilidade à iniciativa deixou de fazer sentido. As contas de poupar CO2 e vender energia desapareceram. E todas aquelas associações e empresas que apoiavam, dinamizavam e consideram o projecto interessantíssimo devem ter sido levadas pelo vento para outras paragens, pois nem uma palavra se lhes ouviu quando o mesmo saiu de cena.
Mas Lisboa é ela mesma há muitos anos uma Parada de Vento: o presidente, seja ele António Costa, João Soares ou Santana Lopes, empenha-se no anúncio de grandes intervenções, de obras que vão mudar a cidade e de medidas de fundo. Da contestação e da defesa dessas obras se anima e alimenta a vida municipal, isto, claro, na estreitíssima folga que é dada aos presidentes e vereadores pela própria máquina da autarquia. Pois sendo os presidentes da CML eleitos em função de campanhas em que falam da cidade, uma cidade um bocado imaginada mas apesar de tudo cidade, mal se vêem nos paços do concelho declaram, certamente animados pelas melhores intenções, que vão arrumar a casa para em seguida tratarem da cidade. Com uma assombrosa regularidade, acabam invariavelmente a desgastar-se e a gastar cada vez mais dinheiro e tempo com a manutenção e gestão da própria máquina autárquica do que com a cidade propriamente dita. Entretanto, Lisboa vai-se degradando. E é com essa cidade que as pessoas se confrontam. Seria bom que nas próximas autárquicas, para lá do amor, da paixão, do sentido e de tudo o que de marcante quiserem fazer por Lisboa, os candidatos falassem disto:
A tralha nos passeios. Temos painéis para publicidade. Marcos do correio cada vez maiores e estranhamente menos robustos donde, apesar do seu gigantismo, estarem frequentemente selados. Quiosques de jornais que não funcionaram mais do que uns meses. Restos dos quiosques Infocid que supostamente deveriam ter sido "um espaço de importância transcendental para a administração pública que fará ganhar o país" e para ali estão apagados, andaimes que se eternizam e sobretudo uns nauseabundos equipamentos para reciclagem. O modelo escolhido não se ajusta aos objectos que deveriam acondicionar; logo sobram papéis e embalagens por todo o lado. Como se isto não bastasse, umas almas bem-intencionadas mas pouco sensatas resolveram passar a acondicionar o óleo dos fritos numas garrafas, frascos e potes que colocam ao lado dos ditos "papelões", "vidrões" e "plasticões". Entre óleo entornado, cartão que não cabe no "papelão" e plásticos que ninguém sabe onde colocar, estes equipamentos representam tudo aquilo que não deveria acontecer.
Mercados municipais. A única coisa que os autarcas em Lisboa ainda não fizeram pelos mercados municipais foi experimentar eles mesmos vender peixe e hortaliças. O problema dos mercados municipais em Lisboa é uma constante noticiosa desde que, nos anos 70 do século passado, os supermercados começaram a praticar horários alargados. O chamado comércio tradicional começou por processar os supermercados por estes quererem trabalhar nos sábados à tarde. Os comerciantes acabaram por perder primeiro a guerra e depois muitos deles perderam também a clientela. Já quem tinha banca nos mercados municipais recusou olimpicamente todas as propostas municipais para abrir aos fins-de-semana. E assim chegámos várias décadas depois com os ditos mercados em franco declínio e muito dinheiro municipal gasto para os dinamizar. Seria bom que para lá dos beijos e dos abraços às peixeiras os candidatos fizessem na campanha que se avizinha umas pequenas compras e tentassem levá-las até ao carro. Descobririam que é dificilímo: nos mercados municipais podem faltar coisas tão baratas quanto um vulgar carrinho de supermercado que permita transportar as compras e em muitos casos não existe parque de estacionamento. Não há apego ao tradicional, campanha de marketing ou investimento que convença alguém a carregar com cinco quilos de batatas nas mãos quando noutro lugar as pode simplesmente enfiar num carro de compras.
As obras. Os candidatos deviam fazer um roteiro que os levasse do cemitério de Carnide ao parque de estacionamento das Portas do Sol. Estas obras têm em comum o terem envolvido vários executivos lisboetas, custarem caríssimo e não funcionarem. O país tem discutido muito se deve ou não avançar para grandes obras como o TGV ou o novo aeroporto. É excelente que se discutam essas opções. Mas grande parte do nosso endividamento resulta não das grandes obras que fizemos mas sobretudo destes disparates que se multiplicam às centenas pelo país. Como é possível que a autarquia de Lisboa não tenha conseguido escolher o terreno adequado para um novo cemitério onde gastou dez milhões de euros? Que tenha gasto 5 milhões de euros num parque que ninguém procura? Alguém de bom senso entrega o carro a um autómato num parque cujo exterior está todo grafitado e emporcalhado?... E, já que estamos em maré de dinheiro, podemos saber quanto custou a recuperação do Teatro Taborda? O mesmo que, segundo a CML, a companhia Teatro da Garagem que aí esteve instalada terá danificado. Segundo dados da Direcção-Geral das Artes, o Teatro da Garagem terá recebido no ano passado 240 mil euros. Não sei se chega para pagar os danos, mas certamente que será uma boa ajuda.
Um artigo da jornalista Helena Matos no jornal Público
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