sábado, 21 de novembro de 2009

"Mel com Cicuta"


Laura Abreu Cravo no seu Mel com Cicuta (um blogue que descobri) escreveu este texto a propósito do casamento entre homossexuais e a problemática da adopção. Não podia ser melhor:

Sim

Fui, durante anos, contra o acesso ao casamento por pessoas do mesmo sexo. Por uma única razão: não faz sentido dissociar o casamento da adopção. Há um elefante no meio da sala que muitas pessoas do Sim teimam em ignorar e que muitas pessoas do Não querem transformar numa espécie de fim da civilização ocidental. Vamos por partes e devagarinho:

1. Uma notinha prévia para dois tipos de pessoas:

a. as que usam o argumento de que os homossexuais já se podem casar, só não podem fazê-lo uns com os outros;

b. e aquelas que dizem que o país tem assuntos mais graves e, portanto, este não tem a dignidade da urgência que o faria merecer se discutido.

Vão para o raio que vos parta. Todos. Os primeiros porque são imbecis e os segundos porque não têm a mínima noção do que é um contrato social ou, mais ainda, do que é ser cristão. Em que momento da vossa infeliz e ressabiada vida é que olharam directamente nos olhos de alguém que está a tentar discutir uma coisa essencial para a sua vida e tiveram a coragem de lhe dizer:” — Agora não, pá, que estou a tentar resolver os problemas das exportações”.

Caso consigam identificar esse momento — esse no qual a resolução hipotética de um problema vos ocupa mais disponibilidade mental do que o sofrimento de um outro ser humano — chegou a altura de entalarem as mãozinhas na porta do forno (ligado) para terem mais uma coisinha com que se entreter.

2. O Referendo (que apareceu agora como bóia de salvação dos que vêem a iminência da lei) não me merece muitos comentários além do senso comum:

a. Referendar direitos de minorias é uma tolice. Bacelar Gouveia iluminou-nos ontem com o caso da independência de Timor-leste, mas talvez fosse útil alguém mostrar-lhe uns bonecos que expliquem que quem votou foi exactamente essa minoria que reclamava o direito e não a totalidade dos timorenses e indonésios. (se alguém tiver dificuldades em perceber esta terrífica equação, por favor avise, temos plasticinas disponíveis).

b. Ao contrário da questão do aborto — em que conflituavam o direito à vida e a liberdade da mulher (ambos constitucionalmente tutelados) — neste caso não temos qualquer conflito de direitos.

c. Acresce que a essência da nossa democracia é representativa e não directa. Havendo um sufrágio desta questão nos programas eleitorais relevantes, a devolução desta matéria ao eleitorado (quando não existem bens constitucionais conflituantes) deturpa a lógica da nossa democracia e levaria ao exercício absurdo de exigir referendos para todos os pontos do programa eleitoral do partido que ganhou sem maioria absoluta.

3. Independentemente da questão jurídica (admito que a maioria dos gays e lésbicas se estejam nas tintas para ela), do que se trata aqui é de uma questão de reconhecimento social, de aceitação de uma situação que, de facto, já existe, da legitimação, pela sociedade, da relação entre duas pessoas e dos efeitos desta decorrentes (se alguém puder fazer a fineza de recuperar aquele argumento delicioso de Bacelar Gouveia sobre as dívidas dos cônjuges, por favor use o e-mail lá em cima, já que raras vezes vi exemplares tão bons do famoso “raciocínio em espiral”). Dito isto, porque é que duas pessoas do mesmo sexo não podem ter o mesmo reconhecimento social do seu amor do que eu? O casamento, que foi consagrado juridicamente para tutelar a família, tem de tutelar as famílias. Todas. Mesmo aquelas que não seguem as ilustrações dos livros da primeira classe.

4. E, agora sim, não faz sentido, do ponto de vista jurídico também, mas, sobretudo, do ponto de vista humano, conceber um acesso ao casamento que omite a possibilidade de reconhecimento do direito a constituir família adoptando. É certo que a adopção tem como bem único tutelado o interesse da criança e não o direito de quem quer que seja a constituir família, mas, se os homossexuais podem já adoptar sozinhos (e depois viver, de facto, com aquilo que o simbolismo ainda lhes nega), que tipo de bem é que estamos a proteger?

5. Durante muito tempo vivi esta dúvida, a dos efeitos da parentalidade homossexual numa criança. Angustiava-me dizer àquelas pessoas que não lhes reconhecia um direito porque podiam “estragar” a cabeça das crianças. Resolvi deitar mãos à obra. Fui ler, falei com pessoas, li mais, falei com mais pessoas e fiz o que fazem as pessoas sérias: de toda a informação que recolhi obriguei-me a tirar uma conclusão. É muito fácil ficar a dizer que não ao desconhecido. Mas o desconhecido não é tão desconhecido quanto isso. Basta querer ver e saber. Além disso, pensando no superior interesse da criança interditaria uma mão-cheia de paizinhos heterossexuais com que me fui cruzando vida fora. Gente normalizada, com a cabeça cheia de tralha no sótão, que faz da vida dos outros um inferno e da sua própria um chiqueiro. Não foram educados por homossexuais. Oxalá tivessem sido.

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