quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Um poema de António Ramos Rosa


Vemos através da luz o que luz faz aparecer
e que sem ela seria opaca sombra
Mas a luz de que maneira a vemos se estamos nela [imersos
e é tão transparente o seu fulgor
que é nas coisas onde pousa que melhor a vemos
Mais do que a visão que cinge e delimita quanto [vemos
a luz respira-se como algo que nos é dado em [imediata oferenda
e se nela reparamos não é com a atenção fixa
[com vemos as coisas
mas com um olhar que se espraia na sua indefinida
[e fulgurante evidência
em que se consuma e renova continuamente aberta
[e absorta
e não se detém porque é o movimento de uma
[perceção evanescente
Como qualificar a luz de Lisboa que no entanto
[sentimos tão peculiar
se a depojarmos das casas e dos muros das praças
[e dos pátios
das ruas e dos passeios de pedras desenhadas
ou do largo esplendor do Tejo?
Onde quer que seja demora-se como uma ténue praia
e a sua delicadeza é de uma transparente barca
que em si mesma navega continuamente côncava
abrindo o mundo no seu impercetível movimento
Na plenitude fulgurante do meio dia
é o excesso cósmico que ofusca e quase cega
erguendo em colunas de mercúrio embriagado
[o sonoro sangue dos homens que caminham
sobre as pedras claras como estilhas de luas
É então que ela vibra como um grande órgão branco
abraçando a latitude de uma praça ou de um rio
e incendiando o estrépito dos carros e dos transeuntes
Quando entardece é uma suave rainha reclinando-se
e sumptuosamente flébil estendendo-se sobre o leito
[do horizonte
incendiada por um derradeiro fogo melancólico
[em purpúreas faixas azuladas
Nos pequenos pátios solitários com uma árvore
[de dourada placidez
cria a intimidade de um claro escuro de sossegada
[concha
onde se pode ouvir o murmúrio de uma fonte
[ritmando a solidão
Sobre as casas aviva ou esbate as cores como
[um harmónio de água
e todas se combinam numa melancolia entre a sombra
[e a claridade
ou como imóveis chamas de um harmonioso incêndio
Entre as árvores em alaranjados verdes azuis
[ou dourados tons
vibra como um doce e lento instrumento voluptuoso
num acorde que nos insere na materna indolência
[do mundo

António Ramos Rosa

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