quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Hiroshima!


A 6 de agosto de 1945 os Estados Unidos da América lançaram uma bomba atómica sobre Hiroshima.

Neste blogue é obrigatória a lembrança desta data.

Testemunho de Shintaro Yokochi publicado no Expresso de 5 de agosto de 2000:

O céu estava claro e sem nuvens e a manhã anunciava-se ensolarada na aldeia de Yokohama; a pouco mais de um quilómetro de Hiroshima, no lado oposto da baía do mesmo nome. Frequentava o quarto ano da instrução primária e já poderia estar de férias se a guerra, que parecia não ter fim, não nos obrigasse a permanecer nas aulas no início de Agosto. Passava pouco das 8 horas da manhã e o professor falava calmamente, quando de repente um clarão enorme inundou a sala de aula. Era uma luz azul tão intensa que por momentos fiquei encandeado e não consegui ver nada. Apesar disso, corri para a janela e vi uma bola de fogo no cimo do monte. Seguiu-se um estrondo enorme e, por instinto, saltei pela janela. Depois ficou tudo escuro e um vento muito forte e quente abateu-se sobre nós, as janelas estilhaçaram-se e os vidros foram projectados em pedacinhos por todos os lados, as colunas contorceram-se e a escola ficou torta. O pânico foi total. Alguns dos meus colegas ficaram deitados no chão e os seus choros tornaram-se angustiantes. Senti um formigueiro percorrer-me o corpo e a boca secar. Naquele instante pensei: o Sol caiu.

Enquanto uma nuvem de fumo ia devorando o céu, pude verificar que aquele vento que se seguira ao estrondo tinha destroçado grande parte da aldeia. Com as pernas a tremer e sem perceber o que se estava a passar, corri em direcção a casa. Ao chegar perto dela reparei que o jardim tinha sido arrancado, as colunas que suportavam a casa esta tortas e o telhado partido, mas, apesar disso, a casa ficara de pé. Lá dentro, nada estava no mesmo sítio. A minha mãe tentava pôr um pouco de ordem nas coisas e o meu pai, que pertencia a um grupo de protecção civil, já tinha partido para Hiroshima. Corri em direcção ao monte que ficava sobranceiro à casa, esgueirando-me por entre os destroços. Senti as pernas a fraquejar e o coração a bater cada vez mais depressa. O calor era intenso e caía uma chuva preta que se misturava com as lágrimas que me escorriam pela cara. Quando cheguei ao cimo do monte, pensei que o Inferno tinha descido à Terra. Lá em baixo, na baía, os pescadores atiravam- se à água para escapar ao vento que os queimava e uma coluna de fumo subia pelo céu até perder de vista. Não queria acreditar no que os meus olhos viam, Hiroshima tinha desaparecido.

Os edifícios ou tinham caído ou as paredes que lhes restavam balouçavam como se fossem de cartão. As chamas brotavam dos escombros e começavam a propagar-se, impelidas pelo vento ameaçador. Aterrado, desci novamente até à aldeia e comecei a vislumbrar, formas humanas que se moviam como numa procissão de fantasmas. Vinham de braços erguidos, afastados do corpo, as mãos em frente ao peito e gemiam. Compreendi, então, que eram pessoas queimadas a procurar evitar que os braços lhes tocassem nos corpos. Vinham nus ou cobertos por pedaços de roupas que se confundiam com as peles queimadas e penduradas. Os rostos esta contraídos pela dor, mas os seus lábios já não articulavam uma palavra, faziam apenas alguns gestos em silêncio.

A minha escola, ou o que restava dela, serviu para acolher os feridos e transformou-se numa espécie de hospital. A ajuda para aliviar dores não era muito eficaz porque ninguém sabia ainda do que se tratava, apenas se dizia que tinha sido lançado um novo tipo de bomba. Não havia medicamentos para tratar aquelas pessoas que iam chegando cada vez mais e mais. Muitas acabaram por morrer nas horas seguintes. Durante todo o dia um cogumelo de fumo pairou no céu e a chuva preta não cessou de cair. Essa foi a noite mais longa da minha vida. Fiquei sozinho em casa. O meu pai continuava em Hiroshima em missão de salvamento e a minha mãe dava assistência aos feridos no hospital. Encolhi-me num canto do que restava do meu quarto. Na escuridão da noite sentia apenas o corpo a tremer e as lágrimas a correrem-me pelo rosto. E, apesar do cansaço, tinha medo de adormecer.


Na íntegra aqui.

A homenagem de Ney Matogrosso:

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