Quando Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito presidente da República, muitos previram que haveríamos de ler teses sobre o modo como os campos político e mediático intervieram na longa criação de uma figura conhecida por todos, assente numa proximidade emocional que passou dos ecrãs para as ruas, e fez esquecer, ou pelo menos secundarizar, um passado político feito de ideias conservadoras nos costumes e liberais em política e economia. Esses estudos surgirão, sem dúvida, e serão úteis para compreendermos como a comunicação social tem um peso crescente sobre as escolhas dos cidadãos, políticas e outras. Mas esse olhar crítico sobre o papel dosmedia e da política na formatação do pensamento e na definição do «consensual» não pode resumir-se aos tempos institucionalmente definidos como momentos de confrontação e debate (campanhas eleitorais, eleições). Cada vez que dispensamos a crítica, o distanciamento racional ou a procura de informação plural, alguém está a fazer escolhas por nós. Mesmo que sob o manto aparentemente transparente e benigno da simpatia, do afecto, da informalidade, ou da razoabilidade.
A comunicação social está, em geral, rendida aos encantos da presidência de Marcelo Rebelo de Sousa. Os jornalistas gostam da postura do novo ocupante do cargo, em gritante contraste com o anterior, dão-lhe a palavra a propósito de tudo, tornam-se espectadores, com câmaras e microfones, de um espectáculo por ele encenado para conquistar «afectos». Mas o que quer Marcelo fazer com o afecto dos portugueses, agora que já é presidente? Talvez o importante seja manter presente a pergunta, porque ela reforça a capacidade de sermos actores das nossas escolhas, e não espectadores das que outros façam em nosso nome.
Marcelo não é apenas um produto de um consenso fabricado por si próprio, pelos media e por parte significativa da sua família política. Ele é, agora como presidente, uma fabricação diária dos próximos «consensos», da futura opinião dominante a mobilizar quando passar a acalmia possibilitada pelo alívio do garrote austeritário. Derrotada a ideia de que havia apenas um caminho realista e sério para o país, que em anos mais fáceis permitiu o sucesso tecnocrático de alguém como Cavaco Silva mas já não serviria depois do fracasso económico e do sofrimento social da austeridade, o presidente estará a preparar o país para o fim da acalmia.
Marcelo não ignora que, mantendo-se os níveis de dívida (pública e externa) e os demais constrangimentos impostos pela União Europeia (limites do défice, arquitectura da moeda única, etc.), a reversão da austeridade não basta para manter o Estado social nem criar emprego e desenvolvimento. Sabe também que, à medida que a actual governação for correndo bem, mais quererá Bruxelas intervir com a sua ortodoxia, usando todo o seu peso: pressões através dos mercados financeiros, exigências institucionais de cumprimentos das regras dos tratados, criação mediática de um ambiente de tragédia iminente. O governo do Partido Socialista pretende usar este tempo para reverter políticas e ganhar apoios, nacional e internacionalmente. O presidente da República parece jogar nos dois tabuleiros: enquanto não nega o apoio ao actual governo vai preparando o possível dia de amanhã, construindo as pontes que podem juntar o neoliberalismo com o social-liberalismo.
A actuação e os discursos do presidente vão sendo um misto de tudo isto. Cheio de ambivalências e ambiguidades no acessório, mas muito claro no essencial. Começou logo no dia da tomada de posse como presidente, um dia com uma dimensão institucional e popular de louvar, mas cuja vertente religiosa devia ter causado apreensão. Estava a ser investido o mais alto representante de uma República laica e não-confessional, o que não é o mesmo que pluri-confessional nem multi-religiosa. Noutro dia, podia ter sido uma meritória acção contra os que apostam no ódio entre as religiões; naquele momento devia ter levantado questões sobre o entendimento presidencial da laicidade do Estado.
O inusitado convite de Marcelo Rebelo de Sousa ao presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, para participar no seu primeiro Conselho de Estado já foi mais polémico. Mas igualmente insólito é que o discurso de Draghi sobre «o estado da área do euro» nesta reunião (7 de Abril) está integrado na lista de intervenções do presidente da República no sítio Internet da Presidência. O que justifica este estatuto? A menos que esta excepção se repita com outras figuras (o que continuará a ser bizarro), parece que Marcelo quer falar por entreposta pessoa. Diz o texto: em Portugal, embora «as dúvidas tenham aumentado na fase inicial da crise, nos últimos anos, constata-se até um sólido fortalecimento da confiança na nossa moeda comum»; «não se justifica anular reformas anteriores», sendo «necessárias mais reformas no conjunto da área do euro (…) com vista a responder às vulnerabilidades e à rigidez remanescentes»…
A intervenção de Marcelo no 25 de Abril permite pensar que concorda com Draghi. Desde logo, pela forma como enuncia quatro «grandes consensos» ou «objectivos nacionais», das reformas sectoriais (da Segurança Social ao sistema político) à integração nesta União Europeia (a «integração europeia» que refere não será certamente geográfica nem numa União inexistente). Depois, pela chocante narrativa que faz dos que descreve como «os grandes vencedores sobre a crise» (as famílias que só sobreviveram co-habitando ou emigrando) e que mais não são do que as vítimas que ele, defensor da necessidade da austeridade, ajudou a criar. Além de moralmente repugnante, não devia esta imagem da crise ter sido denunciada como profundamente conflitual?
Marcelo tem procurado fabricar dois outros «consensos», começando por os instilar entre especialistas. O primeiro prende-se com a reforma da Constituição da República, para compatibilizar «democracia económica e social e viabilidade financeira», porque há casos em que «a Constituição funciona como um limite, naquilo que pode ser tolhido em termos de direitos fundamentais, por causa de condicionantes de natureza económica e financeira». Terão sido fortuitas estas declarações na sessão de encerramento das Comemorações dos 40 Anos da Constituição na Ordem dos Advogados (26 de Abril), que apresentou como um desafio ao «constitucionalismo meramente estatal»? Não. O presidente fizera a mesma referência, a 19 de Abril, noutra sessão comemorativa, no Tribunal Constitucional: «um dia se poderá falar de como a Constituição (…) pode ou não disciplinar as situações de exceção económico-financeira, facilitando a tarefa dos aplicadores que têm tido de utilizar (…) princípios estruturantes como os da igualdade, da proporcionalidade ou da boa-fé».
O segundo «consenso» que parece estar em fabricação foi referido nessa mesma sessão. Ficámos a saber que a«vitalização do sistema político» que pediu a 25 de Abril pode passar pela «busca de um regime político e democrático de maior qualidade, com componente representativa, participativa e referendária». Referendária?, logo perguntou o constitucionalista Jorge Reis Novais. É que não seria a primeira vez que Marcelo se bate pela realização de referendos, cuja experiência em Portugal é, como lembra António Filipe no seu mais recente livro, no mínimo decepcionante e incide sobre o que não deve, deixando de fora os temas que devia referendar. Quererá Marcelo referendar tratados europeus… ou a Constituição, para admitir a austeridade? Se for a segunda, vai dar-lhe muito jeito ter ao seu lado uma comunicação social, e um país, consensual e dos afectos.
sexta-feira 6 de Maio de 2016
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