terça-feira, 14 de junho de 2016

"Contra-sensos na educação" - Sandra Monteiro


O sistema educativo português vive tempos marcados por uma contradição que merece ser intelectualmente compreendida e politicamente resolvida. A contradição não é inédita nem difícil de enunciar: as escolhas políticas relativas aos ciclos básico e secundário da educação estão a traduzir uma concepção de defesa do ensino público, universal e tendencialmente gratuito; as escolhas políticas relativas ao ensino superior estão a determinar, ou pelo menos a encorajar, uma visão neoliberal, elitista e não democrática do ensino superior. Senão vejamos.

Por um lado, o governo e o Ministério da Educação, com o apoio da generalidade da sociedade e com grande visibilidade na comunicação social, estão a travar um verdadeiro combate em defesa da escola pública. O fim dos contratos de associação com estabelecimentos de ensino privado onde há oferta de escola pública assinala a interrupção de uma trajectória neoliberal que apostava em financiar crescentemente os colégios com dinheiro público, financiamento esse que escassearia cada vez mais numa rede pública reduzida, desaproveitada, incapaz de atrair e de se pensar a si própria como garante de um bem e de um serviço público – a educação. Esta modalidade da captura do Estado e dos seus recursos resolvia dois problemas ao projecto neoliberal.

Em primeiro lugar, resolvia um problema económico: as escolas privadas podem escolher um modelo de gestão assente em lógicas puramente empresariais; professores e funcionários mais baratos e precários; ou alunos que partem com mais vantagens socioeducativas e ficam melhor na fotografia dosrankings – tudo coisas que favorecem os lucros de um negócio garantido pelo Estado num mercado concorrencial. Em segundo lugar, o modelo neoliberal dos contratos de associação é uma peça fundamental de corrosão da escola pública e inclusiva, que deve combater as desigualdades socioeconómicas antes mesmo de elas se reproduzirem no prosseguimento dos estudos, nas condições laborais e salariais, ou nas pensões de reforma.

A elitização e a empresarialização de escolas financiadas pelo Estado não é apenas, portanto, um aproveitamento abusivo de recursos públicos que seriam mais bem empregues de outro modo. São uma engenharia neoliberal destinada a garantir lucros para alguns e, sobretudo, a degradar o trabalho e afastar sindicatos, a anular a gestão democrática e colegial, a perpetuar as desigualdades. Quando o governo acaba com contratos de associação e investe na oferta pública está a fazer uma escolha de modelo de sociedade – uma escolha política e ideológica, mas de sinal contrário a outras escolhas. Está a afirmar que este Estado não aceita ser mobilizado pelo«intervencionismo de mercado», como afirma João Rodrigues nesta edição. Como alerta o economista, «este vírus [neoliberal] espalha-se também sempre que descuramos as relações sociais subjacentes à provisão».

Espalha-se sempre. Isto leva-nos ao segundo termo da contradição referida. O mesmo governo que acaba com contratos de associação prevê no seu programa medidas em sentido contrário para o ensino superior público. A questão não tem tido muita discussão pública, mas deve ter. Diz o programa que o governo irá garantir «o reforço e estímulo à adoção do regime fundacional pelas instituições de ensino superior públicas, o estabelecimento de consórcios e a otimização do sistema de governo das instituições públicas, consagrando a responsabilidade de membros externos às instituições nos seus órgãos de governo» [1].

O «reforço do regime fundacional» traduz-se numa engenharia, há muito criticada neste jornal [2], de passagem de universidades públicas a fundações públicas em regime de direito privado. Já em 2007, o então criado Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) previa a passagem a regime fundacional. Em 2009, esse passo foi dado pelo ISCTE, em Lisboa, e pelas Universidades do Porto e de Aveiro. Sem grande discussão pública nem um balanço rigoroso dessas experiências – e até sem a avaliação que o próprio RJIES marcava para 2012 (artigo 185) –, em 2016 foi a vez de a Universidade do Minho passar a universidade-fundação, mesmo com um referendo interno que mostrou a oposição da comunidade académica. Chegou agora a vez da reitoria da Universidade Nova de Lisboa, que enfrenta uma crescente oposição de estudantes, docentes e seus sindicatos, mas que tenciona evitar referendos e concluir o processo ainda em 2016.

O que explica este furor fundacional num país sem fundos? As universidades-fundação são uma resposta profundamente errada, mas a problemas realmente existentes. Desde a primeira fase de neoliberalização do ensino superior público, com o aumento das propinas de forma regular a partir de 1997 e consequentes desinvestimento público, que o ensino superior sofreu importantes transformações. Não as anunciadas (melhoria da qualidade do ensino ou mais apoio social escolar), mas certamente outras: mais levantamento de barreiras de classe à frequência; mais concentração da gestão e quase desaparecimento da gestão democrática; mais adaptação dos currículos e das aprendizagens aos interesses do mercado; mais dificuldades de financiamento, administração dos recursos e do património; e mais pressão para precarizar carreiras, diminuir salários e depender de trabalho gratuito de docentes, investigadores e bolseiros.

Com o anos da Troika tudo piorou. Quem gere as universidades – ainda por cima num contexto de grande isolamento, pois o RJIES afastara já dos órgãos universitários grande da comunidade académica – entrou num inferno de burocracias, de caça ao financiamento, de ligação a empresas e a um mercado que, por definição, não pode substituir-se à universidade quando se trata de lutar por um projecto científico e pedagógico autónomo. O aliado dessa luta têm de ser, em primeiro lugar, os poderes públicos, num quadro de financiamento que permita que as universidades cumpram a sua missão de serviço público e o façam num quadro democrático e de autonomia.

As experiências existentes de regime fundacional mostram, entretanto, que as novas estruturas não resolveram os problemas que anunciaram resolver (os prometidos «dotes» não chegaram, as receitas próprias não foram suficientes para optarem pelas as regras contabilísticas do privado, etc.) e criaram vários outros: concentração de poder nos curadores, fragilização das carreiras dos docentes e «carreiras paralelas», etc.

Os «consórcios» através dos quais se pretende fazer o «reforço do regime fundacional» fazem lembrar, neste contexto, uma espécie de «contratos de fundação». Como nos contratos de associação, colocar os desígnios do ensino universal e tendencialmente gratuito, assim como a autonomia (de gestão, científica e pedagógica) nas mãos de investidores privados só pode trazer elitização da frequência, mercantilização dos saberes e das aprendizagens, regressão dos direitos laborais e da gestão democrática. Não será altura, como propõe nesta edição João Cunha e Serra, da FENPROF, de os órgãos das universidades negociarem, «com o governo e a Assembleia da República», «um regime de autonomia reforçada» das universidades que seja «acompanhado de exigentes medidas de prestação de contas e de responsabilização pelo interesse público»? Se este momento não for aproveitado para resolver esta contradição na concepção dos diferentes graus de ensino, que legitimidade haverá para se afirmar a aposta nas qualificações do país, no combate às desigualdades e no cumprimento das exigências de exercício da gestão democrática que há 40 anos a Constituição fixou?

quinta-feira 9 de Junho de 2016

Notas

[1] www.portugal.gov.pt/pt/o-gov....

[2] Ver Maria Eduarda Gonçalves, «Que universidade queremos?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2008

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