Este vai ser o segundo Orçamento de Estado que inverte o rumo austeritário com que Portugal foi asfixiado desde a assinatura do primeiro «Memorando de Entendimento», em 2011. Para 2017, o governo e a maioria parlamentar de esquerda prevêem reverter o corte de rendimentos e pensões, estancando algumas das mais graves perdas de poder de compra, actualizando o salário mínimo e certas prestações sociais. Reforçam as condições que tornam a educação básica e secundária mais igualitária e melhoram regras de tributação do património imobiliário, sem globalmente agravarem a fiscalidade. Os dados do emprego, tanto os do criado como os da redução do desemprego, invertem também tendências que eram desoladoras. Não estão previstas novas privatizações. Em suma, nada que ainda há pouco tempo, antes do encarniçamento neoliberal austeritário, não pudesse ter sido levado à prática por um governo do centro social-democrata.
A par destas medidas, globalmente positivas, outros aspectos há a assinalar. A recuperação do emprego, bem como o maior combate à precariedade, existem num quadro insustentável de desemprego estrutural, que permanece acima dos 10%, num quadro persistente de insuficiência das prestações sociais e de menor capacidade das famílias para funcionarem como almofadas sociais. A isto acresce a imensa fragilidade de um tecido económico terciarizado e muito dependente das volatilidades do turismo, que a qualquer momento pode voltar a atirar para o desemprego grande parte dos que por um momento lhe escaparam. Por outro lado, se a recuperação de rendimentos por parte dos que mais sofreram os cortes dos últimos anos é positiva, não se pode escamotear que os níveis salariais e de pensões atingem valores tão baixos (e tão desigualmente redistribuídos) que continuamos, apesar de tudo, a falar do Orçamento de um país marcado pela pobreza, por salários baixos e por desigualdades gritantes. Mantêm-se também baixos níveis de investimento público, por comparação com as necessidades criadas pela devastação dos últimos anos. Note-se por fim que os imensos desequilíbrios que alteraram, em detrimento dos trabalhadores, as relações laborais continuam por corrigir (veja-se o caso da negociação colectiva) e que o estancamento do processo de privatizações não foi ainda acompanhado de um programa de renacionalizações, bem necessário em sectores estratégicos essenciais.
A estas como a muitas outras questões, a resposta dos que estão empenhados em pôr fim à austeridade tende a ser: não há dinheiro para mais. Ponhamos por agora de parte todas as questões, que podem estar subsumidas nesta resposta, sobre as quais existem divergências importantes à esquerda. Concentremo-nos apenas naquilo que um governo que reúne o apoio parlamentar de todas as esquerdas não pode deixar de fazer sem se pôr em causa enquanto tal. E sem provocar uma progressiva desafectação por parte do eleitorado mais sacrificado, dos que ouvem falar de uma recuperação que não sentem.
Não há mesmo dinheiro para se fazer melhor, quando estão em causa patamares mínimos de uma sociedade decente? E a questão é que há. Portugal, mesmo num contexto de um crescimento insuficiente – a tal «estagnação secular»? –, e mesmo com um governo apostado em cumprir as insanas metas do défice impostas pela União Europeia, conseguiu equilibrar as contas públicas o suficiente para gerar um saldo primário (sem juros) de cerca de 3 mil milhões de euros em 2016, e de 5 mil milhões de euros em 2017. Note-se que este saldo não chega, ainda assim, para cobrir os juros de uma dívida pública que não pára de aumentar em valores brutos, mesmo que se preveja para 2017 uma ligeira redução em rácio do produto interno bruto (PIB), para 128,3%. Há aqui uma escolha a fazer: pode este país continuar a condenar grande parte da sua população à pobreza, ao desemprego e aos baixos salários e pensões, apenas para tranquilizar a União Europeia quanto à determinação de cumprir o défice e pagar uma dívida insustentável?
Portugal, mesmo sem a presença da Troika, continua a participar no processo de transferência de rendimentos do trabalho para o capital, e de transferência de capital das periferias para o centro. Além de salvar o seu sistema bancário, o país continua a entregar parte substancial da receita aos credores financeiros da dívida pública portuguesa. É por isso urgente voltar a colocar no debate público a necessidade de reestruturar a dívida – nos seus prazos, juros e montantes –, como forma de reequilibrar as responsabilidades de credores e devedores e de canalizar os recursos assim libertados para inverter seriamente a trajectória de regressão social. Nesta edição, a economista Eugénia Pires apresenta duas hipótese de «micro-reestruturações» que podiam avançar já: uma passa por «reivindicar o fim da transferência fiscal dos juros e mais valias pagas ao BCE [Banco Central Europeu] no âmbito do seu programa de aquisição de dívida pública titulada no mercado secundário» e a outra por «suprimir a sobretaxa de penalização de 3% presente nos empréstimos do FMI [Fundo Monetário Internacional]». Começamos por aqui a enfrentar o elefante na sala? Será uma forma de mostrar aos deserdados da recuperação que melhor é possível.
sexta-feira 4 de Novembro de 2016
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