segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

"Aborto: quanto mais pobre, mais criminoso" - Alexandra Lucas Coelho


A noite de 28 de Junho de 1998 foi das mais tristes na democracia portuguesa. Um terço dos eleitores tinha ido às urnas e recusara despenalizar o aborto, por uma nesga (51 por cento). Não se tratava de “aprovar” o aborto (nenhuma lei no mundo o “aprova”), apenas de aceitar que não devia ser crime, e punível com prisão. Isto, num país em que mulheres ainda morriam de aborto clandestino, outras eram denunciadas, condenadas como pecadoras, até julgadas em tribunal (como veio a acontecer em 2001 a 17 mulheres na Maia). Um país refém de uma campanha terrorista pelo Não, em que católicos ultraconservadores manipularam imagens chocantes, sujeitando maiores e menores a uma distorsão obscena da realidade. Vivíamos num estado laico, democrático havia 24 anos, mas de repente não parecia. Por omissão, medo ou fé, Portugal ainda era, afinal, o país sem olhos e sem boca de um poema de Ruy Belo, aquele em que dois terços não foram votar, e em que no fim do referendo o líder político da campanha terrorista, Paulo Portas, pôde aparecer a celebrar vitória. Ou seja, a celebrar, sem pudor político nem piedade cristã, uma abstenção de quase 70 por cento, e que mulheres continuassem a ser criminosas por abortarem. Este ufanismo aconteceu, Portugal já-democrático foi assim, e isso ainda teve consequências devastadoras para mulheres da minha geração.

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