Em Dezembro de 2013, e depois de quase três anos em que a ameaça esteve sempre em cima da mesa, o governo de Pedro Passos Coelho concretizou a primeira fase da privatização dos CTT – Correios de Portugal, uma empresa pública que era lucrativa para os cofres do Estado e que era reconhecida pelos cidadãos como exemplo de um serviço modelo, que muito contribuiu para a coesão territorial e para o sentimento de pertença a uma comunidade política. No ano seguinte, quando os restantes 31,5% da participação do Estado nos CTT foram vendidos em Bolsa, a um preço bem abaixo do mercado, os portugueses tinham já visto chegar a privatização a outras empresas como a ANA – Aeroportos de Portugal, a EDP, a REN ou, no ano seguinte, a TAP. A resposta austeritária a uma crise financeira que acabou por recair sobre os Estados e o mundo do trabalho conseguiu, de facto, avançar com a agenda de sempre do neoliberalismo: privatizar, sobretudo nos sectores capazes de gerar lucros garantidos, e se possível fazê-lo a preço de saldo, a coberto de situações de emergência.
Passados os anos de fúria privatizadora, a economia portuguesa tornou-se menos plural no que diz respeito aos regimes de propriedade, estando à vista as consequências económicas e sociais de subtrair à propriedade pública sectores estratégicos para o interesse comum. De um lado, privar o Estado de receitas suficientes e estruturais corrói o objectivo de assegurar grande parte das suas missões sociais através da provisão pública, ainda por cima no contexto do garrote da dívida. Do outro, privar os cidadãos de serviços públicos, que afinal são os que estão desenhados para escapar às puras lógicas dos lucros privados e da distribuição de dividendos pelos accionistas, expõe-nos a degradações permanentes da qualidade dos serviços prestados, a aumentos dos preços pagos, a reduções da cobertura territorial nas zonas menos lucrativas e – o que piora tudo – a uma menor capacidade de actuação sobre estas realidades. Sem propriedade pública de sectores estratégicos é sempre muito mais difícil subordinar o poder económico ao poder político, os interesses de alguns às necessidades de todos.
Passados quatro anos, a situação dos serviços prestados pelos CTT degradou-se de tal forma que obriga a repensar, não apenas o contrato de concessão, despudoradamente incumprido pela administração da empresa, mas a própria propriedade dos Correios. O que se passa na empresa é um verdadeiro escândalo, como reconhecem até os economistas mais liberais. Os accionistas apoderam-se ano após ano, sob a forma de dividendos, de todos os lucros gerados pela empresa, chegando ao ponto de a descapitalizarem distribuindo dividendos superiores aos lucros. Sem outra estratégia aparente que não a do lucro imediato, enquanto dura, a administração insiste, por outro lado, em cortar a eito em tudo o que pode para reduzir «custos». É assim que se sucedem os encerramentos de balcões pelo país fora, balcões esses que curiosamente são ainda sentidos pelos utilizadores como marcas da presença de um Estado que não pode abandoná-los à sua sorte, à semelhança do que exprimem quando se trata da presença do banco público, da escola ou do centro de saúde. São marcas de uma comunidade política de que os cidadãos não abdicam com a facilidade que o neoliberalismo gostaria… É também assim que se sucedem os anúncios de «reestruturações» na empresa, que todos já sabem serem sinónimos de assédio moral no local de trabalho, de negociações assimétricas, de reduções salariais e de despedimentos (fala-se em mais de 800 trabalhadores), que, por sua vez, contribuirão para comprometer ainda mais a qualidade dos serviços prestados, a cobertura territorial (segura e atempada) a que a concessão do serviço postal obriga. Para comprometer ainda mais, portanto, o futuro da empresa.
Os protestos dos cidadãos descontentes com a degradação dos serviços e os fechos de balcões, bem como as greves e outras formas de manifestação por parte dos trabalhadores dos CTT mostram bem onde podem ser encontrados os que não desistem do futuro dos Correios do país. Antes como depois da privatização, a empresa continua a ser lucrativa. Estamos a falar de lucros sempre acima dos 35 milhões de euros, desde 2012, e até superiores a 60 milhões de euros a partir de 2013. A diferença é que, a partir desse ano de 2013, os lucros deixaram de ser reinvestidos na empresa e deixaram de beneficiar o Estado, passando apenas a enriquecer os seus accionistas, a lesar os cidadãos e os trabalhadores dos Correios. Apesar disto, a situação mantém-se inalterada, ou melhor, degrada-se constantemente, mesmo no quadro da solução governativa que existe no país desde que António Costa se tornou primeiro-ministro.
O que pode ser feito para recuperar os CTT? É hoje evidente que reverter cortes de salários e pensões é muito mais fácil do que reverter privatizações e outras engenharias neoliberais como as parcerias público-privadas. Algo a reter quando chegar a próxima vaga privatizadora… Esta maior dificuldade acontece em parte porque, justamente, o Estado dispõe de instrumentos públicos muito mais seguros para actuar sobre os salários e as pensões. E porque, se em relação aos cortes que sobre eles incidiram existe um histórico constitucional e jurídico consolidado em períodos de correlação social de forças mais favorável aos trabalhadores e ao público, já no que diz respeito às privatizações os poderes públicos enfrentam uma máquina jurídica e um ambiente político e institucional (com escala internacional) muito mais adverso. Isto não significa, antes pelo contrário, que devam ser postas de lado as questões sobre as quais a sociedade tem de pensar colectivamente para encontrar maneiras de resolver situações lesivas e que todos reconhecem ser insustentáveis. Neste caso, e tendo em conta os meios de que as administrações de empresas estratégicas como os Correios dispõem para continuar a saqueá-las, para as destruir privando-as dos seus maiores recursos – os trabalhadores –, e para desvirtuar as suas missões estratégicas orientando-as apenas para lógicas mercantis e de distribuição dos dividendos pelos accionistas, não parece haver uma solução para recuperar os CTT que não passe pela sua renacionalização.
Nos últimos anos, a palavra «nacionalização», durante tanto tempo banida do vocabulário e da proposta política, regressou ao espaço público por iniciativa neoliberal. O neoliberalismo, projecto que não abdica da sua plasticidade desde que não ponha em causa os seus princípios fundamentais, não teve qualquer pejo em apropriar-se do termo, dando-lhe, evidentemente, o seu cunho próprio: nacionalizar significou socializar prejuízos, nunca lucros. É mais do que tempo de, em defesa da propriedade pública de sectores estratégicos, da coesão ainda possível deste território tão desigualmente tratado, e da dignidade dos trabalhadores e de uma empresa histórica como são os CTT, as forças que se opõem ao projecto neoliberal encontrarem formas para que uma empresa lucrativa regresse à propriedade e ao serviço públicos. Enfrentando constrangimentos jurídicos e pressões empresariais, como certamente será necessário fazer, porque em causa estão interesses colectivos e o bem comum. É que só garantindo as bases materiais desta comunidade política poderemos ter esperança de nela florescerem os valores morais que, a cada revés e a cada catástrofe, gostamos de reconhecer nos nossos concidadãos.
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