segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

"Um Jogo da Glória com o Teatro Maria Matos" - Joana Manuel


Do Marquês de Pombal para cima vai deixar de haver teatros ao serviço de quem faz teatro em Lisboa.

Setenta e sete dias após as eleições autárquicas, 52 dias após ter tomado novamente
posse como vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto deu uma entrevista em forma de Jogo da Glória, com o Teatro Municipal Maria Matos feito peão de plástico. Ao primeiro rolar dos dados é-nos prometido “um novo ciclo de programação” (e pensamos, era de esperar, dada a saída do programador), um novo ciclo vocacionado para “teatro de qualidade para grande público — comédia, drama ou teatro musical” (e pensamos, mas então o programador é a Câmara Municipal de Lisboa? que etiquetas estranhas para um teatro municipal...); e que “haverá concurso público para a selecção de um projecto artístico” (vá, menos mau, procura-se um projecto artístico).

Novo rolar de dados. E ficamos a saber que “o Maria Matos terá um modelo de programação com carreiras mais longas” (olha, não está mal pensado, há tantos espectáculos de quem toda a gente fala mas que ninguém viu por terem carreiras de três dias), terá “uma maior preocupação de captação de público, para ser rentável” (e já respiramos fundo para nos prepararmos para o que aí vem) e que “toda a exploração do teatro vai ser deixada na mão da entidade que ganhar o concurso”. E entendemos. Mais do que um projecto artístico, o Maria Matos vai ter um projecto de negócio. Como o Capitólio. Quando não se sabe ainda qual o destino traçado para o Teatro Variedades, também municipal, também em reabilitação.

Fala-se, portanto, não de um novo ciclo de programação, mas de concessionar a gestão do Maria Matos no seu todo. Setenta e sete dias após as eleições autárquicas em que nem o programa do partido que elegeu Catarina Vaz Pinto nem o discurso de campanha anunciaram esta medida. Numa entrevista que não nasce de qualquer tipo de debate público, ou sequer camarário. Este é o primeiro problema desta decisão: é intrinsecamente antidemocrática, anunciada com uma estranha descontracção, e labora em discursos circulares que se resolviam com uma resposta directa — o Maria Matos vai ser concessionado a privados e deixar, para todos os efeitos, de ser um teatro municipal. Vimos isto no Rivoli e conhecemos os maus resultados. Mas foi no Porto e já foi há muito tempo.

Os dados continuam a rolar. Entra como espelho a Culturgest, que receberá o anterior programador do Maria Matos. Sugere-se uma redundância na programação dos dois equipamentos, apesar de Mark Deputter já ter feito bastas declarações afirmando que não vai fazer na Culturgest o que fazia no Maria Matos e de, na última década, a Culturgest e o Maria Matos terem convivido perfeitamente e de forma até por vezes complementar. E num último rolar dos dados, fala-se pelos artistas e estabelece-se que a criação contemporânea, o “emergente-emergente” (mas não basta ser emergente só uma vez?), está em processo de mapeamento vertical pela vereadora: Alkantara, Gaivotas6, ZDB-Negócio, Teatro do Bairro Alto, para merecer chegar, no topo da pirâmide, ao Chiado, ao Rossio (Teatro São Luiz e TNDMII) e, quem sabe, às Avenidas Novas. Há uma espécie de loteamento da criação. Uma concentração geográfica que não se compadece de dez anos de construção no Maria Matos de um espaço de intersecção de música, teatro, performance, dança, investigação e debate, instalação e serviço educativo/infantil, com formação e experiência de equipas, melhoramento das condições técnicas, criação de dinâmicas e de públicos. A ironia (espera-se que involuntária) é que a vereadora da Cultura ainda volta a pôr o dedo numa das feridas, a de que as companhias “não têm os seus espaços, circulam pelas várias programações, às vezes com insuficiente visibilidade porque as carreiras são muito curtas”. Mas aqui apetece ser sarcástico e dizer apenas que, nesse caso, ainda bem que o Maria Matos se vai vocacionar para carreiras mais longas. Só não são para essas companhias. Não são para esses artistas. E esses artistas deixam de ser para essas geografias e demografias. Porque, visando uma maior rentabilidade, ficamos sem equipamentos dedicados à criação contemporânea e não comercial na zona norte de Lisboa. Do Marquês de Pombal para cima deixa de haver teatros ao serviço de quem faz teatro em Lisboa.

O resgate do Teatro do Bairro Alto (TBA) para a criação contemporânea terá virtudes, pode ser interessante para várias programações e programadores, mas não tem de anular a continuidade do Maria Matos como teatro municipal. Não temos espaços a mais, temos espaços a menos. E por virtuoso que seja salvar uma sala histórica e com potencialidades próprias, recambiar para o TBA os artistas e espectáculos que encontravam espaço no Maria Matos encerra vários problemas. Primeiro, a continuidade de um movimento, não exclusivo da Cultura (vale a pena falar dos CTT?), em que o sector público constrói o projecto, equipa-o, dinamiza-o, para depois o entregar a privados e “ao mercado”, enquanto simultaneamente passa a exercer as suas funções num espaço arrendado — o Teatro do Bairro Alto não é propriedade da CML. Depois, a noção de que há um tipo de criação artística e de pensamento que deve ser circunscrito a um gueto gourmet e cosmopolita e não precisa de ter acesso a outras zonas da cidade — e, portanto, a outro tipo de salas, a outros equipamentos municipais, a outras populações, a outros públicos. Porque ao fechar abruptamente o caminho que o Maria Matos tem feito, não é só aos artistas que se fecha o acesso. É a outros públicos que se fecha o acesso a determinados artistas e criações. Além de que há um acesso essencial que não está garantido no Teatro do Bairro Alto, como não está no Negócio ou nas Gaivotas: o de pessoas com mobilidade reduzida, quer como público quer como performers, criando uma forma de exclusão para um grupo de cidadãos que se vêem sem os mesmos direitos que os normalizados — um retrocesso notável no derrubar de barreiras que tanto se persegue nos discursos oficiais.

Disto decorre a petição pela gestão pública do Maria Matos*, que podemos subscrever para exigir um debate sério acerca da política de concessões de equipamentos públicos, da rede de teatros municipais em geral e do Maria Matos em particular. Temos direito a informação concreta sobre o que leva realmente a esta decisão — quais os gastos em causa? O que se procura poupar? Por que razão se aliena assim um equipamento em bom funcionamento? Qual o destino dos meios técnicos e da equipa que constitui o MM? Por que razão o tecido artístico e cultural, por que razão o público, não merecem a existência do Teatro do Bairro Alto e do Teatro Municipal Maria Matos?

Estamos perante uma decisão imposta de cima para baixo, que mistura batatas com alguidares e que, sobretudo, não ouviu os trabalhadores do Maria Matos, os artistas, o público. Não ouviu a cidade. E que continua a usar o investimento público para alimentar a lógica da mercantilização de tudo para todos. Mas para isso já temos o mercado e sabemos o suficiente para não crer na inocência do Jogo da Glória nem aceitar que os nossos equipamentos culturais sejam peões de plástico. Os poderes públicos são para outras garantias. Outras possibilidades.

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