É um momento precioso na vida de um povo. A tampa das leis sociais levanta-se. De repente, a resignação e os hábitos tornam-se assuntos de reflexão, e a seguir são postos em causa. O «rio das cidades cinzentas, e sem esperança de oceano» [1], encontra-se com outros, ilumina-se; e todos se juntam ao mar. O «porque não?» sucede ao «é como é!». Um contágio das sublevações – há cinquenta anos ainda não se falava de «convergência das lutas» – recorda que a história não acabou, que as reformas e as revoluções que a moldaram muitas vezes quiseram abolir a obrigação de obedecer e de suportar.
Em Maio de 1968, o ensaio geral não foi seguido de uma estreia. Uma sublevação marcada por uma das maiores greves operárias da história da humanidade teve até a sua posteridade manchada, porque as suas encarnações mais mediatizadas foram aquelas que correram pior. O dirigente estudantil Jacques Sauvageot, cuja vida foi ceifada no passado mês de Outubro, foi, pelo contrário, um dos rostos mais luminosos do movimento de Maio e, em consequência, dos mais irrecuperáveis. Ele viu neste movimento o «produto de colectivos que agiram numa perspectiva que ultrapassava as individualidades» [2]. Lembrou que os insurrectos de então reflectiam sobre a abolição do capitalismo, questão que, lamentava ele, «já não é colocada por muita gente». Ele e os seus camaradas recusavam uma «modernidade» mais fundada na racionalização do trabalho do que na sua partilha, ou na partilha das riquezas. A globalização a que eles aspiravam visava o «desenvolvimento necessário da solidariedade internacional», não a circulação cada vez mais rápida das mercadorias. Por fim, em Maio de 1968, o que eles pretendiam era combater um poder que pretendia, já nessa altura, «fazer da universidade uma empresa rentável» [3].
Estas memórias relativizam o novo discurso dominante que gostaria de constituir a oposição entre um progressismo cultural arraçado de Maio de 68 – que seria encarnado por Emmanuel Macron, Angela Merkel ou Justin Trudeau – e uma «democracia iliberal» à maneira húngara como o marcador de todos os confrontos políticos. É que, apesar das suas diferenças, o pluralismo das sociedades abertas e o autoritarismo nacionalista encontram-se para preservar o sistema económico e as relações de dominação dele decorrentes [4]. Apresentar o presidente francês como símbolo internacional da moderação democrática face aos «extremos» é, de resto, um paradoxo curioso numa altura em que ele afronta os sindicatos, põe em perigo o direito de asilo e parece ter como principal ambição que os «jovens franceses tenham vontade de se tornarem multimilionários».
Macron tinha previsto comemorar o Maio de 68. Essa festa teria sentido, mas se feita contra o «velho mundo» que ele representa. Esse mundo que, passados cinquenta anos, ainda se lembra do medo que sentiu e pretende completar a sua vingança.
Notas
[1] René Crevel, Détours, La Nouvelle Revue française, Paris, 1924.
[2] «Mémoire combattante: quelques écrits de Jacques Sauvageot», Contretemps, n.º 37, Paris, Abril de 2018.
[3] Segundo as palavras do reitor Jean Capelle, ao analisar um plano governamental de 1966 sobre o ensino superior.
[4] Ler Pierre Rimbert, «De Varsóvia a Washington, um Maio de 68 ao contrário», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2018.
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