domingo, 30 de dezembro de 2018

"A trumpalhada" - Miguel Sousa Tavares


Sentado a uma secretária Império cheia de doirados, como ele gosta, com aquele cabelo laranja-ruivo-loiro-branco (segundo a filha, resultado de experiências químicas mal-sucedidas), a longa gravata vermelho-berrante pendente, Donald J. Trump dirige-se a partir da sua urbanização de Mar-A-Lago, na Florida, aos americanos, no dia de Natal: “Este país é uma desgraça (“This country is a disgrace”). Feliz Natal a todos”. Acredito que a frase tenha sido um resumo montado do canal de televisão canadiano em que assisto à mensagem de Natal de Trump (cansada da sua infatigável Guerra com Trump, a CNN, em versão americana, desde o dia 24 de manhã, que só transmite uma interminável saga sobre a história dos cristãos e do Papado). Mas, resumida ou não, é extraordinário que, dia de Natal ou outro, um Presidente, dos Estados Unidos ou de qualquer outro país, se dirija aos seus concidadãos declarando-lhes que o seu país é uma desgraça. Só mesmo o salteador eleitoral que ocupou a Casa Branca há dois anos. Dois anos que pareceram uma eternidade.

E por que razão declarou ele que o país era uma desgraça? Porque o Congresso não lhe deu os 6,5 mil milhões que reclamava para construir o célebre muro na fronteira com o México, o tal muro que ele jurara na campanha eleitoral que ia conseguir que fossem os mexicanos a pagar — como se alguém imaginasse o México a pagar por um muro para defender os americanos dos próprios mexicanos! E porque o Congresso só lhe deu 1,5 mil milhões dos 6,5 que ele queria, Trump preferiu deixar bloquear todo o Orçamento federal, declarando-se “orgulhoso por fechar a administração” — um mecanismo que entra automaticamente em acção em tais casos, uma vez que toda a despesa nova tem de ser acrescentada à dívida federal de triliões e aprovada pelo Congresso. Orgulhoso, logo no dia 23 partiu de férias para a Florida, deixando o caos instalado em Washington e no Governo. Milhões de funcionários públicos, que recebem o salário à semana, passaram o Natal sem o receber e sem saberem quando voltarão a ser pagos, e a bolsa, que já estava sob pressão com a guerra comercial desencadeada por Trump contra a China e com os rumores da guerra surda de Trump com o presidente da Reserva Federal e o secretário do Tesouro, desabou com o shutdown da administração, levando consigo as poupanças e investimentos de milhões de outros americanos e não só. Mas, nessa altura, já Trump gozava as suas férias e de certeza que deveria já ter-se desfeito dos seus investimentos em bolsa.

Entretanto, Washington vivia ainda o choque do anúncio da retirada do que restava do contingente americano na Síria, mais uma decisão abrupta e unilateral de Trump, que levou à demissão do secretário da Defesa, James Mattis, e do enviado especial para a Síria na Casa Branca. O mesmo anúncio relativamente ao Afeganistão fez o senador republicano Lindsay Graham declarar publicamente que Trump preparava o caminho para o ressurgimento em força dos talibãs e deitava por terra o esforço e o sacrifício de milhares de soldados americanos ao longo de anos. Mas foi a demissão de “Mad Dog” Mattis, vista como o abandono de um dos últimos “adultos na sala”, e, sobretudo, a saída da Síria, que exasperaram toda a gente, incluindo republicanos e aliados do próprio Presidente. Porque ninguém encontra uma explicação racional para isso, ainda por cima num momento em que a investigação do procurador especial do FBI, Robert Mueller, cada vez parece mais próxima de chegar a uma conclusão verosímil e fundamentada entre a campanha presidencial de Trump e o Kremlin. Mueller está a um passo de colocar em cima da mesa as cartas que demonstrarão que Trump foi eleito em grande parte graças à colaboração íntima com os serviços secretos russos e, logicamente, e pergunta seguinte será: “em troca de quê”? A Síria poderia ser uma resposta óbvia. Mas será Trump assim tão estúpido? Imaginar-se-ia ele acima de tudo a esse ponto? Poderia um candidato a Presidente depois Presidente caminhar sobre a linha de traição à pátria?

Parece tudo inverosímil. Mas o certo é que, ao contrário da justificação de Trump para a retirada, logo corroborada por Putin, o Daesh só aparentemente foi derrotado na Síria. Não foi aniquilado, nem desapareceu do terreno: perdeu santuários, recuou, mas está lá. E quem o conteve e fez recuar foram os curdos, apoiados, armados e treinados pelos americanos. Foi aos curdos que americanos e europeus ficaram a dever a aparente derrota do Daesh, porém não terminada. Todas as restantes forças no terreno sírio estavam mais interessadas em defender interesses próprios do que em combater o terrorismo islâmico. Assad estava ocupado em chacinar a oposição interna; os iranianos em conquistar zonas de influência próprias; os russos (cujo território nunca foi atacado pelo Daesh) em apoiar Assad e garantir as suas bases na Síria; e os turcos, do sultão Erdogan, em combater os curdos, sabotando na práctica a luta destes contra o Daesh, de forma a garantir que nunca se verificasse uma fusão entre os territórios curdos da Síria e os da Turquia — que, juntamente com os do Iraque, pudesse dar lugar ao sonho longamente alimentado de dar uma pátria à maior nação do mundo sem país: o Curdistão.

Para os soldados americanos na Síria, abandonar o país significa abandonar no terreno à sua sorte e a uma morte certa os combatentes curdos que nos últimos anos foram os seus camaradas de armas e os mais valorosos e leais combatentes contra o inimigo dos americanos e do Ocidente. O que Trump lhes exige é o mais revoltante que pode ser exigido a um soldado e, por isso, no meio da revolta geral entre altas patentes militares, generais veteranos do Iraque e do Afeganistão e mesmo senadores republicanos, Trump não teve alternativa que não a operação de relações públicas de aparecer de surpresa no Boxing Day de visita às tropas no Iraque, acompanhado da sua First Show Lady — a primeira vez que se incomodou em visitar um teatro de operações. Mas mesmo isso revelou-se um desastre porque não resistiu, nas suas breves três horas de visita, a quebrar um tabu sagrado entre os militares que foi falar-lhes de política interna, para defender a retirada da Síria.

Este Presidente americano tem uma estranha tendência para hostilizar os aliados e amigos dos Estados Unidos e cortejar todos os ditadores do mundo, desde o príncipe assassino da Arábia Saudita, passando pelo bandido filipino Duterte e o coreano Jong, até aos menos óbvios mas não menos perigosos: Erdogan na Turquia, Putin na Rússia, Bolsonaro no Brasil, ou os ditadores regionais europeus, no poder ou a caminho dele. Se o homem tem uma política externa, ninguém sabe qual é, além daquilo que ele, o seu genro e meia dúzia de fiéis que lhe restam, absolutamente destituídos de competência ou experiência, possam congeminar. Seja o que isso for, de certeza que não é do interesse dos Estados Unidos ou dos seus aliados. E, juntando as peças todas do puzzle, encaixando agora a última peça — que é a entrega por completo da Síria à Rússia — é difícil não concluir que, premeditadamente ou não, jamais Vladimir Putin poderia ter na Casa Branca um Presidente mais conveniente para os interesses russos do que este. Não é de excluir a mera estupidez e a arrogância na origem do desfecho. Mas estes são os factos.

A maior potência do mundo caiu nas mãos de um adulto infantilizado, tão mais perigoso quanto ignorante, tão mais imprevisível quanto inseguro. Estes dois anos pareceram uma eternidade e o problema é que ainda faltam pelo menos mais dois. Na célebre carta enviada em Setembro a “The New York Times”, por fonte anónima do Governo Trump, os americanos eram convidados a não entrar em pânico porque havia adultos na Casa Branca que chamavam a si a responsabilidade de controlar os acessos de irresponsabilidade do Presidente. O mesmo conta Bob Woodward no seu livro “Fear”. Mas o que todos discutem agora abertamente é se, com tantos demissionários e demitidos, restará lá algum adulto ou se aquilo estará mesmo, sem freio algum, nas mãos de um irresponsável.

Expresso de 29/12/2018

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