quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

"Media e política" - Sandra Monteiro


Há sempre boas razões para se olhar de forma crítica para o campo mediático. Mas por vezes os cidadãos estão particularmente despertos para essa reflexão, porque o quadro que a suscita entra pelos olhos e pelas casas adentro, quase se impondo à observação. Esses momentos não significam necessariamente uma grande alteração, nem sequer degradação, dos defeitos e constrangimentos que pesam sobre as práticas jornalísticas. Podem traduzir apenas as desarrumações que ocorrem em momentos de instabilidade, de mudanças de maior ou menor grau. A questão é esta: como fazer com que essa percepção de desconforto perante uma informação que devia ser muito mais do que é, porque ela enforma as nossas escolhas resulte num aprofundamento da democracia? Para começar, aproveitando esses momentos para nos determos nos aspectos sistémicos deste campo, para lá da fulanização e das caricaturas, e para treinarmos o olhar crítico, mesmo em situações em que as «normalidades» nos são apresentadas como tão «naturais» e estáveis que esquecemos que elas são terrenos de debate e de escolhas.

Os tempos mais recentes têm dado muito alimento a esta observação, e ela será, desejavelmente, motivo de teses e análises aprofundadas. Aqui e agora, apenas algumas notas. A começar pela eleição de Marcelo Rebelo de Sousa como presidente da República. Tem sido bastante sublinhado, e com razão, o quanto esta vitória se deveu ao êxito de uma exposição, prolongada por décadas, na televisão (RTP e TVI), em particular nos anos de comentário dominical em horário nobre, sem contraditório. Depois de uma vida de militância activa e destacada nos mais altos cargos do Partido Social Democrata (PSD), ao serviço do qual registou também várias derrotas em eleições internas e externas, ter-se-á dedicado a construir uma imagem pública «pós-política», que se quis acima e para lá do conflito e dos «adversários» políticos, optando por uma candidatura «distanciada» das máquinas e figuras partidárias. Teria, assim, trocado uma incómoda colagem à direita e às suas políticas, ainda há pouco rejeitadas pela maioria dos votantes nas eleições legislativas, por uma candidatura de «consensos», «proximidade» e «afectos» (sobre «A estratégia da emoção» em política, ler nesta edição o artigo de Anne-Cécile Robert).

Jornalistas, comentadores e analistas têm-se centrado mais nas dimensões formais do novo presidente como «produto» fabricado (as suas características formais: «capacidades comunicativas», «simpatia», «brilhantismo intelectual», mas também «manipulação», «intriguismo», etc.) e menos no processo de fabricação desse «produto consensual» ou nos traços políticos essenciais que definem o tal «consenso» fabricado. Não é difícil compreender por que motivos isso acontece. Analisar o próprio processo de fabricação de um «produto consensual» por parte dos media implica mobilizar investigadores e cidadãos para um debate que a comunicação social, designadamente a portuguesa, não tem o hábito de fazer. Implica ter, entre outros, jornalistas e empresários da comunicação social a reflectir sobre o seu próprio campo, a criticar escolhas editoriais próprias e de camaradas de profissão, a questionar o papel do jornalismo na democracia e a denunciar as condições de trabalho dos jornalistas numa sociedade (e profissão) onde imperam a concentração da propriedade dos media, o desemprego e a precariedade laboral, os baixos salários e as desigualdades salariais, a ditadura das audiências e do lucro, o imediatismo e a superficialidade da informação, os «ângulos mortos» que ficam por tratar, a falta de pluralismo da informação e da opinião, etc.

Fazer este trabalho suscita dúvidas, potencia inseguranças, expõe conflitos e gera divergências. Mas é um exercício fundamental para a qualidade da informação que temos e da democracia em que vivemos. O mesmo pode ser dito sobre os traços políticos essenciais que definem o tal «consenso» fabricado, neste caso, as características do pensamento e da acção política que se conhecem ao presidente agora eleito. Foi várias vezes afirmado que Marcelo Rebelo de Sousa é perito em «dizer uma coisa e o seu contrário», dificultando que se saiba o que fará no exercício do novo cargo. Mas nem tudo é uma incógnita e, sobretudo, nem tudo do que ele tem afirmado é de somenos importância nas circunstâncias políticas e económicas actuais. Com efeito, tal como Aníbal Cavaco Silva foi especialmente adequado (personalidade, pensamento, atitude) às décadas de valorização do «especialista» técnico, do «pensamento económico único» e da «acumulação de riqueza no topo e derrame para baixo», também Marcelo Rebelo de Sousa está muito bem adaptado à actual cultura mediática e à narrativa política dos «consensos necessários depois de passada a borrasca da crise» (passada?). Mas esta narrativa política dos consensos, que os próprios media têm feito por consensualizar, tem muito de ficção e de ideologia.

Podemos não saber tudo sobre a actuação do presidente eleito, mas sabemos, por exemplo, o que pensa da crise: sempre apoiou as políticas destinadas à «estabilidade financeira» e defendeu o «ajustamento estrutural» (isto é, a «necessidade» de austeridade), limitando-se a criticar os seus «excessos», como o aumento da taxa social única (TSU), e a falta de medidas de crescimento. Sabemos também que defende«consensos de regime», por exemplo no sistema financeiro, no qual, como afirmou ao Jornal de Negócios, entende que «tem de se mexer com pinças» (21 de Dezembro de 2015), mas também na política europeia, orçamental ou na sustentabilidade da Segurança Social. Sabemos, portanto, que insiste em defender uma narrativa desmentida pela evolução económica e social dos últimos anos. Com efeito, ao contrário do que pensa Marcelo Rebelo de Sousa e a direita neoliberal, a austeridade ela própria, e não apenas os seus «excessos», impede o desenvolvimento e agrava todos os problemas – das desigualdades, pobreza, emigração e desemprego até ao défice e à dívida.

Este modelo de resposta à crise falhou, e em Portugal foi recusado nas urnas. Temos hoje, em consequência, um governo apoiado por uma maioria parlamentar que firmou acordos que, com detalhe e clareza, assumem uma reorientação política que corta com o «ajustamento estrutural», reverte medidas de austeridade, aposta na devolução dos rendimentos às famílias (salários e pensões) e na reposição de mínimos sociais, recompondo o peso relativo das componentes do produto interno bruto (PIB) e favorecendo o aumento do consumo de bens não duradouros. É por aqui que passam as possibilidades (certamente estreitas) de desenvolvimento, bem como pela alteração do padrão de especialização produtiva do país e pela reestruturação de uma dívida cada vez mais insustentável.

A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa mostra o quanto a velha narrativa oficial da crise e das alternativas está ainda presente na sociedade portuguesa, mesmo que isso decorra do medo («não conseguiremos passar por mais cortes») e não de se acreditar que ela pode trazer crescimento. E mostra também o quanto o espaço mediático permanece dominado por esta narrativa, que continuará a ter em Belém alguém que, mesmo mais sorridente, a defende. Aliás, nada ouvimos ao presidente eleito durante os dias em que, após a apresentação do esboço de Orçamento de Estado para 2016 pelo governo, a Comissão Europeia, agências de notação e bancos internacionais e a generalidade da comunicação social portuguesa colocaram no banco dos réus, com uma violência inusitada, a orientação política sufragada. Perante o seu silêncio, e a coberto de juízos técnicos que mal escondiam as pressões para mais «ajustamentos estruturais», este spin político-mediático ressuscitador de políticas falhadas revela os receios, não de que as políticas alternativas falhem, mas de que sejam bem-sucedidas. Pior: que sejam contagiosas, numa União Europeia e num euro disfuncionais. Não é, por isso, de consensos nem de unanimismos que precisamos, mas de debate assente em pensamento e escolhas plurais. A política e a comunicação social têm de escolher qual será o seu papel nesta democracia ainda tão frágil.

Sem comentários: