domingo, 26 de outubro de 2008

José Cardoso Pires - 10 anos

ATENTO, VENERADOR E OBRIGADO

Aos dois dias do mês de Outubro de mil novecentos e vinte e cinco, no acto do registo de nascimento do cidadão José Cardoso Pires, foi tacitamente celebrado contrato pelo Governo Português no qual se obrigava o novo súbdito nacional ao cumprimento de determinadas regras, individuais e colectivas, e se lhe garantiam, em contrapartida, direitos de cidadania, de trabalho, subsistência e liberdade.

O referido contrato encontra-se publicado sob a forma de Constituição Política da Nação e não foi até à data revogado ou substituído no essencial.

Passados quarenta e seis anos sobre o estabelecimento desse compromisso, o declarante, que agora exerce o ofício de escritor e se encontra na plenitude dos seus direitos cívicos e políticos, e portanto das prerrogativas ali consignadas, verifica que embora tenha cumprido todos o deveres que assumiu pela referida declaração de nascimento, nunca a segunda parte contratante, o Estado, respeitou as obrigações a que se comprometeu para com ele.

Com efeito,

- exercendo uma profissão de interesse colectivo; - pagando impostos e com isso contribuindo para a manutenção das instituições e dos poderes públicos;
- tendo nos termos da lei cumprido o serviço militar obrigatório; - dispondo de uma situação social devidamente legalizada e promovendo a educação dos filhos a expensas suas;
- e, finalmente, não tendo cadastro criminal,

o signatário, ao cabo destes anos de exercício de cidadão português, verifica e comprova:

- que nada deve ao estado pela sua formação cultural, que foi custeada por si mesmo ou por sua família e dificultada por sistemas de educação obsoletos;
- que nunca lhe foi dado, nem de resto solicitou, o menor apoio ao seu trabalho por parte de organismos oficiais ou oficialmente responsabilizados;
- que nunca usufruiu de qualquer dos benefícios normalmente concedidos pelas instituições de Assistência, Saúde Pública e Educação à generalidade dos portugueses, não obstante a obrigação de contribuir para elas através de diversos impostos; e da mesma forma não lhe é atribuído qualquer apoio estatal em caso de invalidez ou velhice.

Esclarece mais:

- que no exercício da sua profissão, tal como acontece com a maioria dos escritores portugueses, lhe têm sido impostas discriminações e dificuldades materiais, políticas e psicológicas que o impedem de comunicar nas condições de liberdade responsável que o Estado lhe conferiu no referido diploma e lhe negou;
- que além das torções e dos silêncios a que a sua actividade tem sido forçada, os Poderes Públicos não só o obrigam aos descontos que normalmente se atribuem a qualquer exercício profissional livremente praticado como o sobrecarregam com uma segunda percentagem sobre os direitos das traduções que se publicam da sua obra.

Em resumo e concluindo,

afigura-se ao declarante que, tendo cumprido 46 anos de cidadão português, é mais que tempo de lembrar as irregularidades com que o Estado se tem eximido aos deveres que assumiu para com ele no dia 2 de Outubro de 1925. Como circunstância de agravamento, refere que esta situação não o envolve particularmente a ele, declarante, mas abrange, muitas vezes em tempos dramáticos, a grande maioria dos escritores do país.

Perante o exposto, e dado que lhe não são possíveis quaisquer formas de recurso efectivamente consequentes, o declarante remeteu-se, com o preço das inevitáveis segregações, à condição de cidadão à margem, que é aquela para que certos Estados impelem o escritor que crê na independência do espírito.
Assim,
- jamais concorreu a qualquer iniciativa oficial ou para-oficial e por isso o único júri a que até à data submeteu qualquer trabalho seu foi o do Prémio de Novelística "Camilo Castelo Branco", da Sociedade Portuguesa de Escritores,
- e tão-pouco solicitou, mas antes recusou, o apoio de instituições formalmente independentes que nalguns sectores praticam uma política comprometida com as directrizes culturais do Governo, como é o caso, entre outros, das Bibliotecas Móveis da Fundação Calouste Gulbenkian.

Em tempo: o signatário considera oportuno e significativo invocar nesta exposição o exemplo dos escritores que, nas horas difíceis da nossa História, preferiram a incomodidade de uma independência ao reconhecimento negociado de uma cidadania por tolerância ou por sujeição. Esses homens, ao recusarem a sintaxe dos compromissos, procuraram acima de tudo ultrapassar a mesquinhez do tempo e cumprir o seu ofício de vanguarda, que é o de testemunhar e alertar para o futuro, qualquer que seja a perfeição do Sistema. E por isso, rejeitaram as ambiguidades transitórias e as solicitações de circunstância, certos da razão que lhes assistia e para além deles. Sem pressa.

Eis, pois, ao lembrar que está um contrato por cumprir há mais de quarenta e seis anos, o que se oferece declarar um

Atto. Venor. e Obgdo,


aos vinte dias de Dezembro de mil novecentos e setenta e um, ano da anunciada promulgação da Lei da Imprensa.

José Cardoso Pires - E Agora, José?

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