terça-feira, 27 de janeiro de 2009

"O American Way of Science"


A propósito das classificações dos Centros de Investigação financiados pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, publicadas no final do ano passado, foi hoje publicado no jornal Público um artigo de Luís Fernandes que, pela sua relevância, aqui transcrevemos:

O apelo à internacionalização dos cientistas equivale, na prática, à submissão ao sistema científico anglo-americano. É comum ver hoje designadas as nossas sociedades como "sociedades do conhecimento". A produção e a difusão de saber científico são aspectos-chave do funcionamento deste tipo de sociedades, o que confere às suas comunidades científicas um papel estratégico. É por isso que, com regularidade, os governos reafirmam ritualmente o seu investimento na sociedade do conhecimento em geral - veja-se o caso recente do já famoso computador Magalhães - e no sector científico em particular. Ora, a Fundação para a Ciência e Tecnologia tornou públicas, no final do ano passado, as classificações dos centros de investigação que financia.

Não pretendemos pôr em causa a necessidade de avaliar as estruturas da investigação científica ou, sequer, colocar em causa a idoneidade e a isenção do processo que foi levado a cabo. Visa-se, apenas, reflectir sobre o modo como tende a ajuizar-se hoje o trabalho de quem se dedica profissionalmente à ciência, procurando mostrar como este juízo responde a um sistema de regras, nem sempre claramente explicitadas, que relevam de factores extracientíficos. O nosso ângulo de análise é elaborado a partir das ciências sociais e humanas, admitindo por isso que, para outros sectores da divisão das ciências, as questões possam não ser colocadas, em relação a alguns aspectos, do mesmo modo.

As investigações norte-americana e inglesa têm vindo a adquirir progressiva influência no sistema científico internacional, convertendo-se numa verdadeira dominação. É próprio dos sistemas de dominação um traço etnocentrista: são melhores do que os outros, como o demonstra o facto de dominarem, e, portanto, consideram-se, por uma espécie de direito natural, investidos da incumbência de ditarem aos outros um conjunto de regras. E é próprio dos dominados acabarem por incorporar essas regras, de tal modo que passam a achar que são naturalmente suas. No caso vertente, elas ditam aquilo que deve ser investigado, o formato em que devem decorrer os certames de especialistas, em que órgãos da comunicação da ciência devem ser publicados os resultados e em que língua os investigadores devem expressar-se - o que decorre naturalmente do idioma dos países desses órgãos.

As línguas inglesa e, em menor grau, francesa são os instrumentos de afirmação da hegemonia. Sabemos como os sistemas de controlo apostam na vigilância das linguagens e das línguas - a hegemonia exprime-se numa linguagem positivista e na língua inglesa.

Todo o sistema de dominação que não se impõe pela força, mas pela subtileza, tende progressivamente a ser incorporado como natural. É por isso que as gerações de investigadores mais jovens, aculturadas no circuito de congressos internacionais e nos circuitos virtuais da net, onde o inglês é o veículo, não sentem isto como dominação, mas como proficiência - é-se tanto mais competitivo e, portanto, num sistema marcado por uma competição desenfreada, tanto melhor cientista quanto mais e melhor se falar e escrever em linguagem positivista e em língua inglesa.

Note-se que ainda há poucas décadas esta ditadura da língua pendia para o francês. E sabemos dos esforços que a França faz para se manter como língua internacional da ciência, numa consciência clara da perda de influência que a sua desvalorização acarreta - porque uma língua não é só um veículo, é um sistema de pensamento, é constitutiva de uma cultura.

Enfim, o sistema internacional são meia dúzia de países, uma linguagem e duas línguas. Para os avaliadores da FCT, não conta publicar um artigo numa revista brasileira ou espanhola? E polaca ou grega? Os polacos ou os gregos não conseguem fazer uma revista científica que valha pontos? Quando fazemos investigação solicitada e financiada por instituições portuguesas, devemos escrever os relatórios em inglês? E, se a problemática for pouco interessante para os norte-americanos, por razões da nossa especificidade sociocultural, não podendo publicá-la nesses países, esta investigação não vale pontos? Publicá-la aqui não serve para nada? Então a produção de saber não deve ser utilizada pela comunidade a que diz respeito? Não visa agir na nossa realidade próxima? E, se publicar aqui não vale nada, como pode algum dia chegar-se a ter uma boa revista científica?

Portanto, o justo apelo que é feito aos cientistas para se internacionalizarem - o que, nas regras do jogo científico, é não só sensato como indispensável - equivale, na prática, à submissão ao sistema científico anglo-americano. Publicando nas revistas que, neste sistema, são consideradas de qualidade, estamos internacionalizados. E são estas que lemos, são estas que pomos os nossos alunos a ler e é nestas que alguns deles algum dia publicarão - fechando-se assim o círculo da dominação, que a reforça e, no limite, a hegemoniza, tornando-a indiscutida e indiscutível. Foi este o mecanismo pelo qual uma série de países alimentou o sistema financeiro liderado pelos EUA convertido em tentativa de hegemonia neoliberal e cujo círculo acaba de romper-se.

Se esta dominação se verificasse a outros níveis, desqualificando tudo o que se passasse noutras latitudes que não a do eixo anglo-americano e, em menor escala, francófono, esses países seriam acusados de imperialistas e de praticarem a discriminação.

Como podem pessoas que pertencem à nossa cúpula intelectual, como são os membros da comunidade científica, não se darem conta de que estão a ser alinhados por uma mão adestradora que é, em particular no caso das ciências sociais e humanas, exterior à sua lógica de produção e difusão do conhecimento?

Como não se dão conta de que estão a ser infantilizados em interrogatórios de senhores que vêm, por meia dúzia de dias, ao nosso país constituir um júri desfasado da nossa realidade e incapaz de ler, sequer, o melhor da nossa produção porque este não está, as mais das vezes, nas línguas deles?

Que fazemos do pensamento crítico, que devíamos ter tão treinado?

Como somos tão complexos e críticos para umas coisas e tão simplórios e amorfos para outras?

Fiquemo-nos, para já, com estas questões, enquanto não chega o próximo júri internacional convidado pela FCT e não nos ajoelhamos de novo, prontos para o exame de consciência científica...

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