Na tarde de 14 de
Julho de 1912, domingo, na colina de Öfver-Järva, em Estocolmo, Francisco
Lázaro caiu inanimado. O médico que se encontrava no local aplicou-lhe gelo
sobre a cabeça e enviou-o para o posto médico de Silfverdal. A partir daí, dada
a gravidade do seu estado, foi enviado para o Royal Seraphin Hospital, onde
chegou às 17 horas e 30. À chegada, apresentava uma temperatura de 41,2º e
sofreu um intenso ataque de convulsões e cãibras. Foi-lhe diagnosticada
meningite. À meia-noite deram-lhe injecções de água salgada e, mexendo as mãos,
reagiu ao ouvir o seu nome. Mais tarde, entrou em delírio, fazendo movimentos
como se ainda estivesse a correr. Às 6 horas e 20 da madrugada, morreu.
OS
SPORTS ATHLÉTICOS
"Um
regime velho, retrógrado, ingrato e refractário à causa da pátria e àquela que Os
Sports Ilustrados defendem
e propagam, acaba de cair e um outro, novo, resplandecente, cheio de luz,
brilhante de entusiasmo, apto para o trabalho e para a regeneração do nosso
país, acaba de erguer-se e de proclamar-se por entre as salvas de artilharia e
o delírio louco do povo." Quem escreveu assim foi J. Pontes, na edição de
15 de Outubro de 1910 de Os Sports llustrados, um
jornal desportivo que, a par com Tiro e Sport, promoveu
muito claramente a ideia de que o desporto constituía uma oportunidade de
"fortalecimento" do homem português da República. A regeneração
política fazia parte de uma dinâmica renovadora mais abrangente ainda, que não
deixava de fora o físico.
Desde
o final do século XIX que as corridas eram presença habitual no programa das
"festas sportivas" que se iam promovendo em Portugal. Estes eventos,
de ambiente aristocrático, faziam parte do recreio de uma minoria elitista. Com
a República, a referida imprensa desportiva fez eco do ideal democrático do
desporto, defendendo activamente a entrada da educação física no sistema de
ensino, apontando essa questão como uma das razões do progresso das principais
potências europeias. O atletismo, de prática pouco dispendiosa, teve um
importante desenvolvimento nessa época, sobretudo através da corrida e de uma modalidade
nova, importada desde Inglaterra: o "cross-country".
É desses anos a chegada ao nosso país de provas de lançamento do disco e de
salto em altura. A marcha, por sua vez, desfrutava já de uma popularidade
própria, graças ao chamado "Percurso Pátria", que consistia em
caminhadas efectuadas por patrulhas militares, ao longo de distâncias que
podiam atingir os 200 quilómetros e que eram completadas por etapas, havendo
prémio monetário para a patrulha vencedora.
Se
os "sports athléticos" já tinham essa ligação militarista; com a
aproximação dos Jogos Olímpicos de 1912, facilmente se tornaram em argumento
patriótico e de avaliação do desenvolvimento. Quando o estado português se
demonstrou indisponível para financiar uma participação nacional em Estocolmo,
o jornal Os Sports Ilustrados, em
artigo publicado a 12 de Fevereiro de 1912, respondeu assim: "Só Portugal
e Espanha não concorrem! Andamos afastados da Europa e da sua gente civilizada
e os avanços evolutivos de um sistema completo de educação são menos conhecidos
em Portugal que na Oceânia! Esses ecos da civilização têm mais dificuldade em
transpor os Pirenéus que atravessar o Atlântico!"
Mas
existia Comité Olímpico Português desde 1909, nascera justamente com o
objectivo de alcançar a presença de Portugal em Estocolmo. Assim, com
contributos privados e com um sarau de variedades no Coliseu dos Recreios,
quase vazio em dia de greve de eléctricos, conseguiu-se o suficiente para
garantir a primeira presença de uma comitiva portuguesa nos Jogos Olímpicos.
O
GRANDE PEDESTRIANISTA
No
início do século XX, as carroçarias de automóveis eram compostas por muito mais
madeira do que actualmente. Com 20 anos, Francisco Lázaro, nascido em 1888, em
Benfica, era carpinteiro de uma fábrica de carroçarias de automóveis na
Travessa dos Fiéis de Deus, no Bairro Alto, e estava prestes a entrar na
história do atletismo português - o que aconteceu nesse ano de 1908, quando se
deu pela primeira vez o nome de "maratona" a uma prova realizada em
Portugal. Ao contrário dos mais de 40 quilómetros que se corriam no
estrangeiro, a distância proposta foi apenas de 24 quilómetros por se suspeitar
que não houvesse atletas capazes de terminá-la. Lázaro venceu inequivocamente.
Repetiu a proeza alguns meses depois, em nova prova de fundo, no circuito de
Linda-a-Pastora.
Após
uma doença que o afastou completamente da competição, Lázaro regressou apenas
dois anos depois, em 1910, tendo participado na sua primeira maratona com a
distância clássica de 42800 metros. Com um tempo de 2 horas, 57 minutos e 35
segundos, Lázaro dominou a distância, deixando o segundo classificado a mais de
44 minutos. Dos 12 corredores à partida, 10 terminaram a prova. Essa vitória
foi alcançada pelas cores do Velo Clube de Lisboa mas, em Abril de 1911, haveria
de ganhar o primeiro cross-country português em representação do
Sport Lisboa e Benfica. Terminou os 4200 metros no Campo do Lumiar em 20
minutos e 36 segundos. A razão para correr com a camisola do Benfica foi,
simplesmente, o facto de ter sido desafiado a representar o clube do seu bairro
onde, ocasionalmente, jogava futebol nas categorias inferiores. Com a promessa
de "melhoria de condições de preparação, de higiene de vida e de
alimentação", passou a correr pelo Lisboa Sporting Clube. Após vencer mais
uma edição da maratona, em Abril de 1912, numa pista na Alameda das Linhas de
Torres, tentou bater o recorde mundial da meia hora. Não conseguiu, mas atingiu
os 8829 metros que se manteve como o recorde nacional até 1929.
Os
seus treinos entre Benfica e São Sebastião da Pedreira eram conhecidos pela
forma como "competia" com os eléctricos. Há descrições dos muitos
incentivos que recebia por parte dos transeuntes durante esses treinos
pós-laborais. Dentro do panorama desportivo de então, Francisco Lázaro era
concebido como um herói nacional. E se houvessem dúvidas, teriam sido desfeitas
a seis semanas dos Jogos Olímpicos, na maratona nacional, que venceu sem
dificuldade, dando-se ao luxo de percorrer a passo os últimos dois quilómetros,
na dura subida da Calçada de Carriche, tendo deixado o seu concorrente mais
directo a 15 minutos, completando os 42800 metros em 2 horas, 52 minutos e 8
segundos. Nos Jogos Olímpicos anteriores, o americano John Hayes tinha vencido
a prova precisando de mais 3 minutos. Essa conta simples, ignorando as
possíveis imprecisões de cronometragem e de medição, a diferença de condições
ou de percurso, foi suficiente para a maioria dos comentadores da imprensa
portuguesa considerarem que Lázaro era um dos principais candidatos à vitória
olímpica. Estava, aliás, quase assegurada.
O
STADE É VASTÍSSIMO
A
primeira comitiva portuguesa que participou nos Jogos Olímpicos foi constituída
por seis elementos: os atletas António Stromp, Armando Cortesão e Francisco
Lázaro; os lutadores António Pereira e Joaquim Vital; o esgrimista Fernando
Correia. Estes foram os que restaram dos dez que estavam inicialmente
seleccionados, quatro tiveram de ser excluídos por falta de meios.
A
26 de Junho de 1912, partiram do Cais das Colunas, no vapor Astúrias da Mala
Real Inglesa. O início da viagem não acabou com a incerteza e a precariedade
que a antecedeu. Pouco antes dessa data, o Comité Olímpico Português foi
informado por telegrama que o início das provas tinha sido antecipado de 6 para
4 de Julho. Desse modo, a própria viagem entre Lisboa e Estocolmo
transformou-se numa espécie de corrida. Após três dias mareados, de enjoo
permanente, chegaram ao porto de Southampton. Por caminho de ferro, via
Londres, chegaram à pequena cidade portuária de Harwich. Em novo vapor, desta
vez bastante menor e com piores condições, gastaram 1 dia até chegar a Esbjerg,
na Dinamarca. Daí até Copenhaga, foi necessário alternarem percursos de barco e
comboio. Uma vez em Copenhaga, por fim, tiveram de esperar durante 10 horas por
um comboio que os levasse a Estocolmo, após 12 horas de viagem. Chegam exaustos
na manhã de 1 de Julho e, casualmente, foi-lhes comunicado que o telegrama
estava errado, os jogos começariam no dia 6, conforme sempre esteve previsto.
Lázaro
nunca tinha estado tão longe de casa e admirava-se com o que via. A sua origem
social era notoriamente mais baixa do que a dos seus companheiros de comitiva,
entre os quais se contavam estudantes de medicina e do Instituto Superior de
Agronomia, ou um empregado superior do Montepio Geral. Em 1988, Armando
Cortesão respondeu a uma entrevista de Romeu Correia: "Era um grupo muito
amigo. Mesmo o Lázaro, que se afastava socialmente de nós, era um camarada
esplêndido. Um rapaz muito simples, muito simpático. Ainda me lembro, quando a
bordo do paquete da Mala Real Inglesa, tínhamos de ir de smoking para a mesa, e
ele, coitado, muito aflito a pôr o laço. E lá fui eu e o Fernando Correia
ajudá-lo a fazer o laço do smoking. Mesmo à mesa, nós o aconselhávamos a
comedir-se: Não faça isso... Não coma com a faca... Bom rapaz, o Lázaro. A sua
morte marcou-nos para a vida."
Alojados
numa escola primária, os participantes portugueses surpreendiam-se com o
carácter cosmopolita dos jogos e com as condições que eram dedicadas ao
desporto. O jornal Os Sports Ilustrados partilhava esse impacto: "O vasto stade,
construído em 1910, sob a direcção do arquitecto Torben, pela quantia de um
milhãe e novecentos mil francos é um anfiteatro em forma de ferradura. Coberto
em toda a superfície o stade é vastíssimo podendo comportar
25000 espectadores. Aos lados, em toda a extensão dos seus longos corredores,
estão situadas as salas douches, os numerosos gabinetes de toilette para os
atletas, as cozinhas para a preparação dos hors-d'oeuvres."
Foi
nesse estádio que decorreu a cerimónia de abertura, na qual, o lutador Joaquim
Vital levou a placa com o nome do país e Francisco Lázaro teve a honra e o
destaque de levar a bandeira, vermelha e verde, a bandeira da República, ainda
tão nova, a apresentar-se às outras bandeiras.
O
SEBO E A EMBORCAÇÃO
O
que terá pensado Francisco Lázaro, no balneário, rodeado por atletas que não
entendia e que não o entendiam? De automóvel, António Pereira e António Stromp
foram colocar-se no quilómetro 5 que, na volta, seria o 35. Joaquim Vital
esperava-o no quilómetro 15 que, depois, seria o quilómetro 25. Entretanto, nas
bancadas, Fernando Correia e Armando Cortesão impacientavam-se com o facto de
não o encontrarem entre os atletas que iam preparando os músculos para a grande
prova. Já quase na hora do tiro de partida, dirigiram-se ao balneários e
encontram-no a untar-se com sebo para impedir a perda de líquidos pela
transpiração, segundo o próprio lhes contou. Na entrevista a Romeu Correia,
disse Armando Cortesão: "Não faço a menor ideia onde o Lázaro conseguiu
arranjá-lo (o sebo), mas conseguiu e estava a untar-se..." Também segundo
Cortesão, tentaram colocá-lo debaixo dos chuveiros e limpá-lo, mas não chegaram
a fazê-lo convenientemente porque a corrida estava prestes a começar.
Debaixo
de sol forte, 32º de temperatura, Lázaro era dos poucos com a cabeça descoberta
entre os 68 participantes da maratona olímpica de 1912. Mais tarde, no discurso
que fez no seu enterro, Fernando Correia afirmou tê-lo aconselhado a cobri-la,
ao que Lázaro respondeu: "o calor não me incomoda: até folgo que o haja,
porque fará afastar alguns concorrentes."
Poucas
são as evidências que demonstram a crença de que ia bem colocado na prova
quando desfaleceu. No relatório do chefe da missão, pode ler-se que Lázaro, ao
quilómetro 25, "já levava avanço grande e pouca diferença do
primeiro". Talvez se possa interpretar essas palavras como um gesto de
consideração póstuma. É possível que a mesma intenção esteja por detrás da
seguinte afirmação de Romeu Correia no livro Portugueses na V Olimpíada:
"Já no regresso do percurso, aos 25 quilómetros, vinha na 18ª posição,
muito perto dos primeiros." No que diz respeito ao tempo e à distância, a
corrida é uma modalidade de precisão inequívoca e, segundo o Comité Olímpico
Sueco, Lázaro não surge entre os primeiros dezoito atletas na passagem aos 25
quilómetros. Aliás, o 19º, o último cujo tempo foi contabilizado, passou a mais
de 8 minutos do líder, ou seja, nem esse ia a "pouca diferença do
primeiro".
Os
companheiros que o aguardavam no quilómetro 35, ao não o verem chegar, foram
procurá-lo de automóvel. Encontraram apenas os postos de acompanhamento da
prova a serem levantados. Foi o embaixador António Feijó que lhes deu a notícia
da perda de sentidos ao quilómetro 30 e que os acompanhou ao hospital.
Hoje,
há quem não atribua a morte de Lázaro ao calor e ao episódio do sebo. Esse é o
caso do professor Gustavo Pires em entrevista ao Diário
de Notícias, a 15 de julho de 2009, onde afirmou que Lázaro morreu
"porque utilizou produtos nocivos". As chamadas
"emborcações" eram utilizadas para alcançar o máximo rendimento e
resistência. Numa edição do jornal Tiro e Sport, de 15 de
Setembro de 1910, o seu director, A. Malheiros, escrevia: "devemos partir
do princípio que é com a emborcação que vamos assegurar a elasticidade e a
perfeita maleabilidade dos músculos de que se exigem os esforços mais
efectivos, tornando-os insensíveis à dor e à fadiga, e evitar o quanto possível
as cãibras que têm sido e serão sempre o inimigo irredutível de todos aqueles
que se dedicam ao sport." Nesse mesmo
artigo, Malheiros dá uma receita de emborcação com ovos, água destilada,
terebintina e ácido acético. Pela descrição de Pedro Nolasco, em A
morte de Francisco Lázaro, da forma como a autópsia encontrou o
fígado de Lázaro faz supor que poderia haver o consumo de outras substâncias:
"completamente mirrado, do tamanho de um punho fechado e rijo, a tal ponto
que só se conseguira partir a escopro, como se fosse uma pedra". Na já
referida entrevista a Romeu Correia, a descrição do modo como Joaquim Vital foi
a uma farmácia comprar emborcação e acabou a massajar Armando Cortesão com um
produto que, soube-se mais tarde, era remédio para os dentes é também
reveladora da falta de conhecimento e de condições.
FILIPÍADES
"Ganho
ou morro", são as palavras atribuídas a Francisco Lázaro antes da maratona
que não ganhou. Palavras de um profetismo tão exacto que põe em causa a sua
credibilidade. Ainda assim, a história deste atleta é feita de múltiplos acasos
intertextuais perfeitos: a sobreposição ao mito de Filipíades, fundador da
própria maratona, no qual este sucumbiu de exaustão após anunciar em Atenas que
os persas tinham sido derrotados em Maratona ou, mesmo, o paralelismo invertido
em relação ao episódio bíblico de Lázaro de Betânia, ressuscitado no Evangelho
Segundo São João.
Em
Portugal, o nome de Francisco Lázaro tem sido dado a ruas, a sua imagem já
figurou em selos e inspirou a personagem central do romance que publiquei em
2006, Cemitério de Pianos, cuja escrita me levou a
visitar Estocolmo pela primeira vez e a interessar-me tanto pela história deste
atleta. No entanto, creio que é na imaterialidade do imaginário popular que a
maior homenagem lhe tem sido prestada ao longo destes cem anos. E talvez a
força dessa efabulação, que não é indiferente às distorções narrativas da
memória, se aproxime dos motivos pelos quais até os elementos mais concretos,
como o número de quilómetros que tinham decorrido quando desfaleceu, a hora a
que começou a corrida ou mesmo sua data, sejam apresentados em diversas
versões, dificultando a reconstituição mínima do que aconteceu.
Se
for como desconfio, a história de Francisco Lázaro veicula uma tragicidade que
fala de modo muito directo aos portugueses, porque toca em algo muito profundo,
que faz parte da nossa identidade e que a exprime de modo pungente.
José Luís Peixoto (in revista Visão História, 2012)
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