terça-feira, 29 de janeiro de 2013

"A META DA MARATONA INFINITA"



Na tarde de 14 de Julho de 1912, domingo, na colina de Öfver-Järva, em Estocolmo, Francisco Lázaro caiu inanimado. O médico que se encontrava no local aplicou-lhe gelo sobre a cabeça e enviou-o para o posto médico de Silfverdal. A partir daí, dada a gravidade do seu estado, foi enviado para o Royal Seraphin Hospital, onde chegou às 17 horas e 30. À chegada, apresentava uma temperatura de 41,2º e sofreu um intenso ataque de convulsões e cãibras. Foi-lhe diagnosticada meningite. À meia-noite deram-lhe injecções de água salgada e, mexendo as mãos, reagiu ao ouvir o seu nome. Mais tarde, entrou em delírio, fazendo movimentos como se ainda estivesse a correr. Às 6 horas e 20 da madrugada, morreu.


OS SPORTS ATHLÉTICOS


"Um regime velho, retrógrado, ingrato e refractário à causa da pátria e àquela que Os Sports Ilustrados defendem e propagam, acaba de cair e um outro, novo, resplandecente, cheio de luz, brilhante de entusiasmo, apto para o trabalho e para a regeneração do nosso país, acaba de erguer-se e de proclamar-se por entre as salvas de artilharia e o delírio louco do povo." Quem escreveu assim foi J. Pontes, na edição de 15 de Outubro de 1910 de Os Sports llustrados, um jornal desportivo que, a par com Tiro e Sport,  promoveu muito claramente a ideia de que o desporto constituía uma oportunidade de "fortalecimento" do homem português da República. A regeneração política fazia parte de uma dinâmica renovadora mais abrangente ainda, que não deixava de fora o físico.

Desde o final do século XIX que as corridas eram presença habitual no programa das "festas sportivas" que se iam promovendo em Portugal. Estes eventos, de ambiente aristocrático, faziam parte do recreio de uma minoria elitista. Com a República, a referida imprensa desportiva fez eco do ideal democrático do desporto, defendendo activamente a entrada da educação física no sistema de ensino, apontando essa questão como uma das razões do progresso das principais potências europeias. O atletismo, de prática pouco dispendiosa, teve um importante desenvolvimento nessa época, sobretudo através da corrida e de uma modalidade nova, importada desde Inglaterra: o "cross-country". É desses anos a chegada ao nosso país de provas de lançamento do disco e de salto em altura. A marcha, por sua vez, desfrutava já de uma popularidade própria, graças ao chamado "Percurso Pátria", que consistia em caminhadas efectuadas por patrulhas militares, ao longo de distâncias que podiam atingir os 200 quilómetros e que eram completadas por etapas, havendo prémio monetário para a patrulha vencedora.

Se os "sports athléticos" já tinham essa ligação militarista; com a aproximação dos Jogos Olímpicos de 1912, facilmente se tornaram em argumento patriótico e de avaliação do desenvolvimento. Quando o estado português se demonstrou indisponível para financiar uma participação nacional em Estocolmo, o jornal Os Sports Ilustrados, em artigo publicado a 12 de Fevereiro de 1912, respondeu assim: "Só Portugal e Espanha não concorrem! Andamos afastados da Europa e da sua gente civilizada e os avanços evolutivos de um sistema completo de educação são menos conhecidos em Portugal que na Oceânia! Esses ecos da civilização têm mais dificuldade em transpor os Pirenéus que atravessar o Atlântico!"

Mas existia Comité Olímpico Português desde 1909, nascera justamente com o objectivo de alcançar a presença de Portugal em Estocolmo. Assim, com contributos privados e com um sarau de variedades no Coliseu dos Recreios, quase vazio em dia de greve de eléctricos, conseguiu-se o suficiente para garantir a primeira presença de uma comitiva portuguesa nos Jogos Olímpicos.



O GRANDE PEDESTRIANISTA

No início do século XX, as carroçarias de automóveis eram compostas por muito mais madeira do que actualmente. Com 20 anos, Francisco Lázaro, nascido em 1888, em Benfica, era carpinteiro de uma fábrica de carroçarias de automóveis na Travessa dos Fiéis de Deus, no Bairro Alto, e estava prestes a entrar na história do atletismo português - o que aconteceu nesse ano de 1908, quando se deu pela primeira vez o nome de "maratona" a uma prova realizada em Portugal. Ao contrário dos mais de 40 quilómetros que se corriam no estrangeiro, a distância proposta foi apenas de 24 quilómetros por se suspeitar que não houvesse atletas capazes de terminá-la. Lázaro venceu inequivocamente. Repetiu a proeza alguns meses depois, em nova prova de fundo, no circuito de Linda-a-Pastora.

Após uma doença que o afastou completamente da competição, Lázaro regressou apenas dois anos depois, em 1910, tendo participado na sua primeira maratona com a distância clássica de 42800 metros. Com um tempo de 2 horas, 57 minutos e 35 segundos, Lázaro dominou a distância, deixando o segundo classificado a mais de 44 minutos. Dos 12 corredores à partida, 10 terminaram a prova. Essa vitória foi alcançada pelas cores do Velo Clube de Lisboa mas, em Abril de 1911, haveria de ganhar o primeiro cross-country português em representação do Sport Lisboa e Benfica. Terminou os 4200 metros no Campo do Lumiar em 20 minutos e 36 segundos. A razão para correr com a camisola do Benfica foi, simplesmente, o facto de ter sido desafiado a representar o clube do seu bairro onde, ocasionalmente, jogava futebol nas categorias inferiores. Com a promessa de "melhoria de condições de preparação, de higiene de vida e de alimentação", passou a correr pelo Lisboa Sporting Clube. Após vencer mais uma edição da maratona, em Abril de 1912, numa pista na Alameda das Linhas de Torres, tentou bater o recorde mundial da meia hora. Não conseguiu, mas atingiu os 8829 metros que se manteve como o recorde nacional até 1929.

Os seus treinos entre Benfica e São Sebastião da Pedreira eram conhecidos pela forma como "competia" com os eléctricos. Há descrições dos muitos incentivos que recebia por parte dos transeuntes durante esses treinos pós-laborais. Dentro do panorama desportivo de então, Francisco Lázaro era concebido como um herói nacional. E se houvessem dúvidas, teriam sido desfeitas a seis semanas dos Jogos Olímpicos, na maratona nacional, que venceu sem dificuldade, dando-se ao luxo de percorrer a passo os últimos dois quilómetros, na dura subida da Calçada de Carriche, tendo deixado o seu concorrente mais directo a 15 minutos, completando os 42800 metros em 2 horas, 52 minutos e 8 segundos. Nos Jogos Olímpicos anteriores, o americano John Hayes tinha vencido a prova precisando de mais 3 minutos. Essa conta simples, ignorando as possíveis imprecisões de cronometragem e de medição, a diferença de condições ou de percurso, foi suficiente para a maioria dos comentadores da imprensa portuguesa considerarem que Lázaro era um dos principais candidatos à vitória olímpica. Estava, aliás, quase assegurada.



O STADE É VASTÍSSIMO

A primeira comitiva portuguesa que participou nos Jogos Olímpicos foi constituída por seis elementos: os atletas António Stromp, Armando Cortesão e Francisco Lázaro; os lutadores António Pereira e Joaquim Vital; o esgrimista Fernando Correia. Estes foram os que restaram dos dez que estavam inicialmente seleccionados, quatro tiveram de ser excluídos por falta de meios.

A 26 de Junho de 1912, partiram do Cais das Colunas, no vapor Astúrias da Mala Real Inglesa. O início da viagem não acabou com a incerteza e a precariedade que a antecedeu. Pouco antes dessa data, o Comité Olímpico Português foi informado por telegrama que o início das provas tinha sido antecipado de 6 para 4 de Julho. Desse modo, a própria viagem entre Lisboa e Estocolmo transformou-se numa espécie de corrida. Após três dias mareados, de enjoo permanente, chegaram ao porto de Southampton. Por caminho de ferro, via Londres, chegaram à pequena cidade portuária de Harwich. Em novo vapor, desta vez bastante menor e com piores condições, gastaram 1 dia até chegar a Esbjerg, na Dinamarca. Daí até Copenhaga, foi necessário alternarem percursos de barco e comboio. Uma vez em Copenhaga, por fim, tiveram de esperar durante 10 horas por um comboio que os levasse a Estocolmo, após 12 horas de viagem. Chegam exaustos na manhã de 1 de Julho e, casualmente, foi-lhes comunicado que o telegrama estava errado, os jogos começariam no dia 6, conforme sempre esteve previsto.

Lázaro nunca tinha estado tão longe de casa e admirava-se com o que via. A sua origem social era notoriamente mais baixa do que a dos seus companheiros de comitiva, entre os quais se contavam estudantes de medicina e do Instituto Superior de Agronomia, ou um empregado superior do Montepio Geral. Em 1988, Armando Cortesão respondeu a uma entrevista de Romeu Correia: "Era um grupo muito amigo. Mesmo o Lázaro, que se afastava socialmente de nós, era um camarada esplêndido. Um rapaz muito simples, muito simpático. Ainda me lembro, quando a bordo do paquete da Mala Real Inglesa, tínhamos de ir de smoking para a mesa, e ele, coitado, muito aflito a pôr o laço. E lá fui eu e o Fernando Correia ajudá-lo a fazer o laço do smoking. Mesmo à mesa, nós o aconselhávamos a comedir-se: Não faça isso... Não coma com a faca... Bom rapaz, o Lázaro. A sua morte marcou-nos para a vida."

Alojados numa escola primária, os participantes portugueses surpreendiam-se com o carácter cosmopolita dos jogos e com as condições que eram dedicadas ao desporto. O jornal Os Sports Ilustrados partilhava esse impacto: "O vasto stade, construído em 1910, sob a direcção do arquitecto Torben, pela quantia de um milhãe e novecentos mil francos é um anfiteatro em forma de ferradura. Coberto em toda a superfície o stade é vastíssimo podendo comportar 25000 espectadores. Aos lados, em toda a extensão dos seus longos corredores, estão situadas as salas douches, os numerosos gabinetes de toilette para os atletas, as cozinhas para a preparação dos hors-d'oeuvres."

Foi nesse estádio que decorreu a cerimónia de abertura, na qual, o lutador Joaquim Vital levou a placa com o nome do país e Francisco Lázaro teve a honra e o destaque de levar a bandeira, vermelha e verde, a bandeira da República, ainda tão nova, a apresentar-se às outras bandeiras.



O SEBO E A EMBORCAÇÃO

O que terá pensado Francisco Lázaro, no balneário, rodeado por atletas que não entendia e que não o entendiam? De automóvel, António Pereira e António Stromp foram colocar-se no quilómetro 5 que, na volta, seria o 35. Joaquim Vital esperava-o no quilómetro 15 que, depois, seria o quilómetro 25. Entretanto, nas bancadas, Fernando Correia e Armando Cortesão impacientavam-se com o facto de não o encontrarem entre os atletas que iam preparando os músculos para a grande prova. Já quase na hora do tiro de partida, dirigiram-se ao balneários e encontram-no a untar-se com sebo para impedir a perda de líquidos pela transpiração, segundo o próprio lhes contou. Na entrevista a Romeu Correia, disse Armando Cortesão: "Não faço a menor ideia onde o Lázaro conseguiu arranjá-lo (o sebo), mas conseguiu e estava a untar-se..." Também segundo Cortesão, tentaram colocá-lo debaixo dos chuveiros e limpá-lo, mas não chegaram a fazê-lo convenientemente porque a corrida estava prestes a começar.

Debaixo de sol forte, 32º de temperatura, Lázaro era dos poucos com a cabeça descoberta entre os 68 participantes da maratona olímpica de 1912. Mais tarde, no discurso que fez no seu enterro, Fernando Correia afirmou tê-lo aconselhado a cobri-la, ao que Lázaro respondeu: "o calor não me incomoda: até folgo que o haja, porque fará afastar alguns concorrentes."

Poucas são as evidências que demonstram a crença de que ia bem colocado na prova quando desfaleceu. No relatório do chefe da missão, pode ler-se que Lázaro, ao quilómetro 25, "já levava avanço grande e pouca diferença do primeiro". Talvez se possa interpretar essas palavras como um gesto de consideração póstuma. É possível que a mesma intenção esteja por detrás da seguinte afirmação de Romeu Correia no livro Portugueses na V Olimpíada: "Já no regresso do percurso, aos 25 quilómetros, vinha na 18ª posição, muito perto dos primeiros." No que diz respeito ao tempo e à distância, a corrida é uma modalidade de precisão inequívoca e, segundo o Comité Olímpico Sueco, Lázaro não surge entre os primeiros dezoito atletas na passagem aos 25 quilómetros. Aliás, o 19º, o último cujo tempo foi contabilizado, passou a mais de 8 minutos do líder, ou seja, nem esse ia a "pouca diferença do primeiro".
Os companheiros que o aguardavam no quilómetro 35, ao não o verem chegar, foram procurá-lo de automóvel. Encontraram apenas os postos de acompanhamento da prova a serem levantados. Foi o embaixador António Feijó que lhes deu a notícia da perda de sentidos ao quilómetro 30 e que os acompanhou ao hospital.

Hoje, há quem não atribua a morte de Lázaro ao calor e ao episódio do sebo. Esse é o caso do professor Gustavo Pires em entrevista ao Diário de Notícias, a 15 de julho de 2009, onde afirmou que Lázaro morreu "porque utilizou produtos nocivos". As chamadas "emborcações" eram utilizadas para alcançar o máximo rendimento e resistência. Numa edição do jornal Tiro e Sport, de 15 de Setembro de 1910, o seu director, A. Malheiros, escrevia: "devemos partir do princípio que é com a emborcação que vamos assegurar a elasticidade e a perfeita maleabilidade dos músculos de que se exigem os esforços mais efectivos, tornando-os insensíveis à dor e à fadiga, e evitar o quanto possível as cãibras que têm sido e serão sempre o inimigo irredutível de todos aqueles que se dedicam ao sport." Nesse mesmo artigo, Malheiros dá uma receita de emborcação com ovos, água destilada, terebintina e ácido acético. Pela descrição de Pedro Nolasco, em A morte de Francisco Lázaro, da forma como a autópsia encontrou o fígado de Lázaro faz supor que poderia haver o consumo de outras substâncias: "completamente mirrado, do tamanho de um punho fechado e rijo, a tal ponto que só se conseguira partir a escopro, como se fosse uma pedra". Na já referida entrevista a Romeu Correia, a descrição do modo como Joaquim Vital foi a uma farmácia comprar emborcação e acabou a massajar Armando Cortesão com um produto que, soube-se mais tarde, era remédio para os dentes é também reveladora da falta de conhecimento e de condições.



FILIPÍADES

"Ganho ou morro", são as palavras atribuídas a Francisco Lázaro antes da maratona que não ganhou. Palavras de um profetismo tão exacto que põe em causa a sua credibilidade. Ainda assim, a história deste atleta é feita de múltiplos acasos intertextuais perfeitos: a sobreposição ao mito de Filipíades, fundador da própria maratona, no qual este sucumbiu de exaustão após anunciar em Atenas que os persas tinham sido derrotados em Maratona ou, mesmo, o paralelismo invertido em relação ao episódio bíblico de Lázaro de Betânia, ressuscitado no Evangelho Segundo São João.

Em Portugal, o nome de Francisco Lázaro tem sido dado a ruas, a sua imagem já figurou em selos e inspirou a personagem central do romance que publiquei em 2006, Cemitério de Pianos, cuja escrita me levou a visitar Estocolmo pela primeira vez e a interessar-me tanto pela história deste atleta. No entanto, creio que é na imaterialidade do imaginário popular que a maior homenagem lhe tem sido prestada ao longo destes cem anos. E talvez a força dessa efabulação, que não é indiferente às distorções narrativas da memória, se aproxime dos motivos pelos quais até os elementos mais concretos, como o número de quilómetros que tinham decorrido quando desfaleceu, a hora a que começou a corrida ou mesmo sua data, sejam apresentados em diversas versões, dificultando a reconstituição mínima do que aconteceu.

Se for como desconfio, a história de Francisco Lázaro veicula uma tragicidade que fala de modo muito directo aos portugueses, porque toca em algo muito profundo, que faz parte da nossa identidade e que a exprime de modo pungente. 

José Luís Peixoto (in revista Visão História, 2012)

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