sexta-feira, 15 de março de 2013

"Fim de ciclo, fim de regime"


Gaspar voltou a atirar ao lado. O intelectual orgânico por excelência da República, aquele que legitima realmente o Governo, através do débito de idiotices tecnocráticas, não acertou uma previsão desde que se tornou ministro de Estado e das Finanças. É um profeta incompetente. A figura política em que assenta este processo revolucionário em curso do séc. XXI mostrou não ser capaz de cumprir a função essencial que lhe tem sido atribuída: credibilizar a destruição em curso, torná-la inevitável, desejável e um desígnio nacional. Gaspar é um falhanço. Enquanto ministro, enquanto comunicador, enquanto ideólogo e, mais importante, enquanto «economista». A legitimidade do ministro ficou definitivamente destroçada com a comunicação dos resultados da sétima avaliação. Mas a credibilidade do ministro não é o problema do sistema político português, neste momento. E também não é a organização partidária ou sistema eleitoral, ainda que ambos necessitem de mudanças drásticas para se tornarem funcionais - se quisermos uma democracia representativa semipluralista, e não é líquido que toda a gente a queira.

Apesar dos manifestos onde a nação tem direito a ser Nação e a culpa é de todos os partidos, o problema ingente do sistema político é a falência da legitimidade do ministro de Estado e das Finanças. O alicerce tecnocrático do regime esboroou-se e o consenso tácito, a desmobilização organizada de 1986 a 2013 (porque os fundos estruturais tiveram, como efeito - previsto ou imprevisto - a desmobilização política, a oligarquização/cartelização dos partidos políticos e o reforço de novas identidades corporativas (basta ver a classe capitalista rentista e a coerência do seu discurso público) está em risco. O ciclo político está a mudar porque Passos Coelho, enquanto líder de uma federação de interesses cada vez menos alinhados, não tem capacidade ou competência para realinhá-los, reassumir a matriz conservadora do PSD e, ao menos, confrontar a troika com base no primado do soberanismo nacionalista, que tem sido uma das respostas amargas contra o capitalismo extorsionário das instituições multilaterais. Paulo Portas ver-se-á a braços com uma crise intrapartidária porque, sem dar por isso, entrou numa coligação que irá destruir a implantação social do PP - é que o PP, apesar da sua deriva neoliberal, continua a depender do voto católico e conservador para sobreviver, e é esse voto, com o ataque sem quartel aos pensionistas que Mota Soares lidera, que está a perder; e, comprometido com o memorandismo, não tem saída. O PS, por seu lado, e já se tem afirmado isto noutros campos, é o principal problema da democracia portuguesa. Um partido de centro-esquerda faz falta a uma democracia representativa liberal. Quando não existe, o pluralismo diminui. O PS é um partido indistinguível do PSD, os seus quadros não têm qualidade (Assis? Lello? Zorrinho? Seguro?), está comprometido com o memorandismo e, como organização interessada na sua sobrevivência, fará tudo para impedir um novo ciclo. Porque as suas luminárias menos estúpidas sabem que um novo ciclo significa três mudanças fundamentais: rasgar o memorando, equacionar seriamente a saída do euro e arriscar um colapso eleitoral (como o PASOK) ou a desaparição (se um cataclismo partidário, como no princípio dos anos 90, na Itália). À esquerda, as faúlhas de uma mudança paradigmática parecem perder o gás: o PCP está perdido entre a assunção de uma posição de força, que obrigue a sua base a alargar-se decisivamente aos novos movimentos sociais sem controleirismos idiotas; o BE, na sua ânsia de navegar na crista da onda, meteu-se pelos caminhos da liderança bicéfala e pela ridícula escravidão da agenda mediática. É por isso que, nos últimos dias, o tema essencial da agenda bloquista foi a saída de Daniel Oliveira, com reconhecida exposição mediática mas irrelevante contribuição para a construção de massa crítica à esquerda. E é por isso que se continua a falar de convergência e unidade sem reflectir acerca dos termos dessa convergência e dessa unidade.

Enquanto isto ocorre, a última sondagem revela que o equilíbrio fundamental do rotativismo neodevorista continua, sólida e impavidamente, em vigor. O eleitorado continua a manter-se inerte e se, nas últimas mobilizações, parte dele fez aquecer as ruas do país, os últimos dados parecem revelar que a) não se revê nas alternativas apresentadas e b) como em todas as sociedades conservadoras, a preferência cai nas soluções conhecidas. Mas também podemos postular c) o eleitorado está a deixar de conferir legitimidade a todo o processo político liberal e d) a própria expressão «eleitorado» faliu.

Nada disto é relevante por agora. A legitimidade eleitoral deste governo, garantida pela eleição, em contexto extraordinário, de 2011, mantém-se. Apesar de ter violado várias das suas promessas eleitorais, de ser um governo colaboracionista e ter transformado Portugal num protectorado de instituições interessadas no endividamento enquanto extorsão. Apesar de ser um Governo obcecado com um programa neoliberal que nunca foi referendado pela comunidade/povo/eleitorado e com o qual, de acordo com uma multitude de inquéritos, essa comunidade/povo/eleitorado não concorda. E apesar de ser um Governo que gosta pouco de coisas como transparência, respeito pela separação de poderes, debate plural ou sociedade civil.

Aquilo que não se mantém é muito mais grave. É a legitimidade epistémica do Governo. E não é preciso ir aos livros ver o que isto quer dizer. Basta entrar num café ou num autocarro. Nos próximos meses, já não nos ouviremos a dizer «aquele gajo até pode estar certo, eu percebo lá de economia» ou «não percebo nada daquilo, e ele diz coisas muito difíceis de perceber; a culpa é minha, ele é ministro e eu não». Ouviremos «este gajo andou para aqui a enganar-nos, fosse eu no meu trabalho a enganar-me e havias de ver se ainda lá estava»; «mas quem é este gajo para ainda ser ministro? não acerta uma!». E, por enquanto, ouviremos palavras - enquanto acharmos que as palavras e o jogo habermasiano ainda não foi corrompido. Porque muitos economistas já nos explicaram que os programas políticos austeritários funcionam, mas de acordo com uma agenda política que tenha três objectivos: desequilibrar a relação entre capital e trabalho ao ponto de tornar o último factor irrelevante; transferir riqueza de forma ascendente (dos mais pobres para os mais ricos) e lateral (do sector público e não-lucrativo para o sector privado rentista), através de privatizações contínuas e da injecção do mercado em todos os domínios da vida; e, finalmente, a refeudalização das sociedades democráticas. Tudo isto é cada vez mais claro e ficará mais claro porque a legitimidade automática de Vítor Gaspar deu o último suspiro. A partir de agora, nenhuma das suas palavras passará por boa apenas porque trabalhou em Frankfurt e serviu cafés a Jean-Claude Trichet. E é por isto que a auditoria à dívida também deve ocupar-se dos problemas específicos da democracia portuguesa: a origem da dívida e a sua dinâmica não são independentes do contexto político.

Um fim de ciclo significará, na minha opinião, uma transição entre regimes. Ocorre-me o melhor texto publicado entre aqueles que se fizeram circular antes das manifestações do passado 2 de Março, da autoria de Paulo Varela Gomes. E cito esta parcela sugerindo a leitura integral do texto:

«A maioria das pessoas pensa que os políticos são uns aldrabões ou corruptos, que o sistema judicial está ao serviço deles e que só os ricos e poderosos se safam. O chamado «descrédito do sistema político», assunto sobre o qual se têm tecido profundíssimas reflexões, é simples de explicar: o sistema está desacreditado porque não merece crédito. As pessoas já perceberam. Uma parte delas continua a votar por desfastio, a outra vota com os pés.»

Não estou certo de que o sistema mereça crédito ou descrédito. Ou que mereça absolutamente que pensemos nele. O dado, facilmente comprovável, é o de que este sistema de organização das relações sociais, económicas e políticas, especialmente políticas, está em falência acelerada. A falência da legitimidade do ministro de Estado e das Finanças é uma causa e uma consequência disto.

E também me ocorre uma ideia de Immanuel Wallerstein, proposta em vários textos e conferências: estamos no meio de um terramoto do Sistema-Mundo capitalista. E esse terramoto, no caso específico português, apresentar-nos-á uma bifurcação: uma pós-democracia musculada, meiguinha para os de cima e brutal para quem está em baixo, construída para extrair riqueza e redistribui-la de forma ascendente e lateral; ou, como princípio, uma democracia maximalista de alta intensidade. O problema enfrentado por aqueles que defendem a segunda saída é relativamente simples. A correlação de forças no sistema política está totalmente desequilibrada a favor daqueles que defendem a primeira saída e não é líquido que a bifurcação ainda exista. Isto é, podemos auditar a dívida, lutar por uma democracia digna de Abril/impermeável a Novembro e por uma República que se constitua como verdadeiro Estado de Direito. Mas já podemos ter sido derrotados sem que o tenhamos percebido colectivamente. Esse é o risco que corremos. Mas também é por isso que continuamos a fazer qualquer coisa. Porque as declarações de Gaspar (e dos eurocratas, e da directora-executiva do FMI, e do governador do Banco Central Europeu) são tão absurdas que só podem representar uma oportunidade para encetar a transformação política de que necessitamos.

Seja como for, não é preciso dar ao povo aquilo que nunca perdeu: a voz. Só precisamos de reencontrá-la. E isso acontecerá, a bem ou a mal, porque o ciclo político dos últimos 30 anos está a terminar e, das suas cinzas, surgirá algo novo.


Luís Pais Bernardo, membro da Comissão de Auditoria da IAC

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