Entrámos numa era política em que várias frases que começam com um «Seria a primeira vez que…» parecem anunciar a concretização de uma eventualidade até agora considerada inconcebível. Nesta Primavera de 2017, as eleições presidenciais francesas marcam, assim, a primeira vez que já não nos questionamos sobre a presença da Frente Nacional (FN) na segunda volta: colocamos a hipótese, ainda muito improvável, da sua vitória. A primeira vez em que ninguém defende o balanço dos últimos cinco anos, apesar de participarem no escrutínio dois antigos ministros do presidente cessante, Benoît Hamon (Partido Socialista, PS) e Emmanuel Macron (Em Frente!). A primeira vez também que os candidatos do PS e da direita, que governaram a França continuamente desde o início da V República, poderão ser eliminados em conjunto logo na primeira volta.
Procuramos também em vão precedentes para uma campanha tão parasitada pela informação contínua, os casos judiciários, a incapacidade geral para se fixar a atenção por mais de vinte e quatro horas numa questão essencial. E não encontramos certamente um só caso anterior de um candidato importante à magistratura suprema indiciado por desvio de fundos públicos quando há dez anos vem afirmando que a França está falida.
O facto de o presidente cessante ter renunciado a lutar por um segundo mandato pode dissimular o ponto de partida de todas estas desregulações. O quinquénio que agora termina viu François Hollande tornar-se o chefe de Estado mais impopular da V República, e isto logo a seguir a o seu antecessor, Nicolas Sarkozy, ter sido já repudiado. Ora, o próprio presidente socialista admitiu ter «vivido cinco anos de poder relativamente absoluto». Em Junho de 2012, pela primeira vez na sua história, o PS controlava com efeito a presidência da República, o governo, a Assembleia Nacional, o Senado, 21 das 22 regiões metropolitanas, 56 dos 96 departamentos e 27 das 39 cidades com mais de 100 mil habitantes.
Hollande fez um uso tão discricionário quanto solitário deste poder. Foi ele quem decidiu o estado de emergência, que envolveu a França em vários conflitos externos, que autorizou o assassinato de simples suspeitos recorrendo a aviões teleguiados. Foi também ele quem fez modificar o Código do Trabalho, forçando a sua maioria parlamentar a uma reforma que ela recusa apoiar (recurso ao artigo 49-3 da Constituição) e para a qual nem ele nem ela haviam recebido mandato do povo. Sem esquecer a refundação do mapa das regiões francesas, que o chefe de Estado redesenhou a partir do seu gabinete no palácio presidencial.
Tudo isto coloca com acuidade a questão das instituições da V República, que Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon (A França Insubmissa) se comprometem a repensar, mas às quais François Fillon (Os Republicanos) e Emmanuel Macron se acomodam, tal como Marine Le Pen. Nenhuma outra democracia ocidental apresenta uma tal concentração de poderes entre as mãos de uma só pessoa. Para lá do perigo, bem real, de um dia se ter um chefe de Estado menos complacente do que aquele que agora termina o seu mandato, as proclamações pomposas sobre a democracia francesa, sobre a República, esbarram numa constatação que a presidência de Hollande tornou flagrante: o exercício solitário do poder fortalece a faculdade ilimitada de desrespeitar os compromissos de uma campanha que, no entanto, deveria fundar o mandato do povo soberano.
François Hollande comprometeu-se a defender a siderurgia francesa, mas homologou o encerramento das unidades de Florange; deveria ter renegociado o Pacto de Estabilidade europeu, mas desistiu de o fazer logo no primeiro dia do seu mandato; prometeu «inverter a curva do desemprego» antes do fim de 2013, mas esta prosseguiu o seu crescimento por mais três anos. Contudo, se ficou marcada nas mentes uma sensação de traição foi sem dúvida por causa de uma frase que marcou a sua campanha de 2012 e que desde então todos voltaram a ouvir mil vezes: «O meu único adversário é o mundo da finança». Ora, mal foi eleito, Hollande foi buscar como conselheiro da presidência um antigo banqueiro do Rothschild, confiando-lhe em seguida as chaves do Ministério da Economia.
A actual aceitação de que Emmanuel Macron parece beneficiar junto da opinião pública é ainda mais desconcertante porque ela pode colocar no poder supremo o digno herdeiro, mesmo que parricida, deste presidente cessante ineditamente impopular. «Emmanuel Macron, sou eu», afirmou um dia Hollande, «e ele sabe o que me deve». Macron não é certamente socialista, mas Hollande também não. Um proclama-o, o outro usa de rodeios. As palavras do primeiro viram as costas a uma tradição de esquerda que maltrata «o dinheiro» ou «a finança», mas isso corresponde às convicções que o segundo exprimiu logo em 1985 na obra La Gauche bouge, que teve também como autores o actual ministro da Defesa e o secretário-geral da presidência.
Neste livro encontrava-se já a ideia, cara a Macron, mesmo que nele ela esteja escondida debaixo de um monte de palavras lanudas e ocas, de uma nova aliança social entre as classes médias cultivadas e o patronato liberal, cimentadas pela vontade conjunta de estar presente num mercado mundial. «Empresariado» em vez de «assistanato», lucro em vez de rendimento, reformistas e modernistas contra extremistas e passadistas, recusa da nostalgia «dos cameleiros e dos aguadeiros»: ouvir Macron é voltar a ouvir o que Bill Clinton já dizia desde 1990, e Tony Blair e Gerhard Schröder alguns anos mais tarde. E segui-lo significaria avançar ainda mais descaradamente do que com Hollande na «terceira via» do progressismo liberal. A via que enganou o Partido Democrata americano e a social-democracia europeia, deixando-os no abismo em que jazem hoje.
«O projecto de Emmanuel Macron é uma escada para a Frente Nacional»
«Globalistas» e «partido de Bruxelas» contra «patriotas»: Marine Le Pen regozijará se o confronto político se resumir a esta dialéctica. Richard Ferrand, deputado do PS e pilar da campanha de Macron, parece antecipar-se aos desejos da candidata: «De um lado», considera ele, «há os neonacionalistas reaccionários e identitários; e do outro há os progressistas que pensam que a Europa é necessária». Esta estruturação do debate ideológico não é inocente. Dos dois lados, o que está em causa é submergir a questão dos interesses de classe, alimentando num caso terrores «identitários» e vituperando, no outro, pulsões «reaccionárias».
Mas, por muito que isso desagrade a todos os progressistas de mercado, os «que pensam que a Europa é necessária» estão situados em termos sociais. Os «trabalhadores destacados» que surgiram por causa de uma directiva de Bruxelas, e cujo número decuplicou nestes últimos dez anos, são mais frequentemente operários da construção civil ou trabalhadores agrícolas do que cirurgiões ou antiquários. Ora, o que «pensam» as vítimas deste dispositivo é também, e sobretudo, o produto do que elas apreendem, isto é, um dumping social que ameaça as suas condições de vida. Para elas, a Europa não se resume ao programa Erasmus ou à Ode à Alegria.
Stephen Bannon, estratego político de Donald Trump, compreendeu o quanto a direita nacionalista podia tirar partido da desclassificação social que acompanha quase sempre as celebrações da aldeia global. «O essencial daquilo em que acreditamos», explica ele, «é que somos uma nação com uma economia, e não uma economia em não sei que mercado mundial com fronteiras abertas. Os trabalhadores de todo o mundo estão fartos de serem submetidos ao partido de Davos. Há nova-iorquinos que agora se sentem mais próximos dos habitantes de Londres ou de Berlim do que dos do Kansas ou do Colorado, e partilham com os primeiros a mentalidade de uma elite que pretende ditar a todos a maneira como o mundo será governado ». Quando Emmanuel Macron, nas suas reuniões públicas consteladas por bandeiras europeias, exalta a mobilidade, reclama o «relançamento pelas margens das empresas» e se compromete a eliminar os subsídios de desemprego depois da décima recusa de uma «oferta de emprego decente», como distinguir as suas propostas dos interesses dos oligarcas do dinheiro e do saber que compõem o «partido de Davos»? Imaginam-se os danos democráticos que resultariam de um eventual frente-a-frente entre ele e Marine Le Pen, o mesmo que a comunicação social procura tornar realidade.
Há mais de vinte anos que defender o «voto útil» significa apresentar os dois partidos dominantes como muralhas contra uma extrema-direita cujo crescimento foi favorecido pelas suas escolhas sucessivas e concordantes. «Hoje», considera Benoît Hamon, «o projecto de Emmanuel Macron é uma escada para a Frente Nacional». Mas, reciprocamente, a força da Frente Nacional fortalece o monopólio do poder dos seus adversários, socialistas incluídos. Logo em 1981, François Miterrand calculou que uma extrema-direita forte obrigaria a direita a fazer uma aliança com ela, correndo o risco de, ao fazê-lo, se tornar inelegível. A manobra foi perturbada em Abril de 2002, quando Jean-Marie Le Pen enfrentou Jacques Chirac na segunda volta das eleições presidenciais. Desde então, a direita já só tem de ultrapassar o PS em qualquer escrutínio, nacional ou local, para depressa se transformar, aos olhos de quase toda a esquerda, no arcanjo da democracia, da cultura, da República.
Instituições monárquicas que permitem todas as patifarias, todas as negações; uma vida política aferrolhada pelo medo do pior; órgãos de comunicação social que se acomodam a umas ao mesmo tempo que se alimentam das outras; e depois… há ainda a Europa. A maior parte das políticas económicas e financeiras de França estão-lhe estritamente subordinadas, o que não impede que o essencial da campanha se tenha desenrolado como se o próximo presidente fosse poder agir com total liberdade.
Uma vitória de Marine Le Pen pode ditar o fim da União Europeia – ela preveniu: «Não serei a vice-chanceler de Merkel». No caso de um dos favoritos a ser eleito – e favorito de Angela Merkel –, isto é, Fillon ou Macron, se instalarem na presidência, a continuidade com os presidentes que eles respectivamente serviram estará, em contrapartida, assegurada, a coerência com as orientações da Comissão Europeia estará preservada e a hegemonia alemã e o ordoliberalismo estarão confirmados, funcionando uma como guardiã atenta da outra. A questão será diferente com Hamon ou Mélenchon. Pondo de lado as tentações federalistas do primeiro e o seu apoio à ideia de uma defesa europeia, os seus objectivos podem parecer próximos. Mas os meios para os atingirem diferem completamente, a tal ponto que as suas duas candidaturas fazem concorrência uma à outra e fazem ambos correr o risco da eliminação.
Com Benoît Hamon é difícil escapar a uma sensação de já visto. Procurando conciliar o apego à União Europeia com o desejo de romper com a austeridade para levar a cabo uma política mais favorável ao emprego e ao ambiente, e menos impiedosa com Estados como a Grécia, esmagada pelo endividamento, o candidato socialista tem de se convencer de que a orientação a que aspira é possível, incluindo no quadro das instituições actuais; que é concebível «atingir resultados tangíveis sem virar as costas a toda a Europa». Hamon funda a sua esperança numa recuperação de influência da esquerda europeia, em particular alemã. Ora, essa é quase exactamente a hipótese que Hollande deixou antever há cinco anos. A 12 de Março de 2012, comprometendo-se «solenemente» perante os seus camaradas europeus reunidos em Paris a «renegociar o Tratado Orçamental» feito por Merkel e Sarkozy, Hollande afirmou: «Eu não estou sozinho porque há na Europa o movimento progressista. Eu não estarei sozinho porque vai haver o voto do povo francês que me vai dar mandato». Cécile Duflot, que se tornou ministra da Habitação de Hollande, recorda-nos o que aconteceu a seguir: «Toda a gente esperava que [Hollande] iniciasse um braço-de-ferro com Angela Merkel. (…) Íamos finalmente virar as costas ao Merkozy. (…) Por muito liberal e rígido que ele fosse, o italiano Mario Monti contava com a França para inverter a tendência. O muito conservador Mariano Rajoy via na eleição de François Hollande a possibilidade de aliviar o garrote que estrangulava a Espanha. Quanto à Grécia e a Portugal estavam prontos para seguir qualquer salvador para evitar a ruína». Sabemos o que aconteceu em seguida.
Uma União Europeia que treme a cada eleição nacional
No fundo, não aconteceu nada que não tivesse já sucedido quinze anos antes. Nessa altura, Hollande dirigia o PS e Lionel Jospin o governo. Em jeito de prelúdio à moeda única, acabava de ser negociado um «pacto de estabilidade e crescimento» que previa um conjunto de medidas de disciplina orçamental, entre as quais multas em casos de défices excessivos. Então líder da oposição, Jospin não deixou de denunciar o pacto como um «super-Maastricht», «concedido de forma absurda aos alemães». Apesar disso, quando se tornou primeiro-ministro em Junho de 1997, Jospin aceitou todos os termos do Conselho Europeu de Amesterdão, alguns dias mais tarde. Segundo Pierre Moscovici, então ministro dos Negócios Estrangeiros, como prémio pelo seu assentimento terá conseguido «a primeira resolução de um Conselho Europeu consagrada ao crescimento e ao emprego». Uma resolução fulminante, como todos puderam desde então constatar.
Hamon e Mélenchon pretendem, por sua vez, renegociar os tratados europeus. Mas será que se dotam dos meios necessários para o fazer? Hamon não põe em causa a questão da independência do Banco Central Europeu, mas espera «conseguir mudanças nos seus estatutos». Aceita a regra dos 3% de défice público, mas «deseja políticas de relançamento» compatíveis com as suas ambições ecologistas. Propõe «a constituição de uma assembleia democrática da zona euro», mas esclarece de imediato o seguinte: «Aceitarei que discutamos o assunto, como é evidente. Não irei para Berlim ou para outro sítio a dizer: “É assim ou nada feito”, isso não tem sentido».
Algumas destas reformas exigem o acordo unânime dos membros da União e nenhuma delas pode hoje contar com o aval de Berlim. Benoît Hamon espera, por isso, modificar a situação graças a um «arco de aliança das esquerdas europeias». E recusa o precedente pouco encorajante de 2012: «Creio que os alemães são mais abertos hoje do que quando Hollande chegou ao poder». O medo da fragmentação da União Europeia, de um lado, e a perspectiva de uma alternância política na Alemanha, do outro, teriam voltado a baralhar as cartas em seu benefício. «Sou do partido da esperança», admite ele, contudo.
Já a esperança de Mélenchon registou mudanças desde 2012. Uma vez que «não é possível qualquer política progressista» na União tal como ela existe, na ausência de uma «saída concertada dos tratados europeus » ou da sua refundação (plano A), não exclui já uma «saída unilateral» (plano B). Como não acredita muito num crescimento próximo e simultâneo das forças de esquerda, que nos próximos anos terão mais tendência para o refluxo, a França, segunda potência da União, torna-se a seu ver a «alavanca da batalha europeia». Jacques Généreux, co-director da redacção do programa presidencial do candidato, resume deste modo a equação: «A saída imposta da França significaria o fim do euro e o fim da União Europeia, muito simplesmente. Ninguém tem interesse em correr este risco. Sobretudo a Alemanha». Em consequência, ao mesmo tempo que recusa vergar-se às regras europeias que constrangem as suas prioridades económicas, «a França pode, sem receios, e se desejar fazê-lo, ficar no euro por quanto tempo quiser».
A União Europeia tornou-se indiferente às escolhas democráticas dos seus povos, certa de que as orientações fundamentais dos Estados-membros estavam aferrolhadas por tratados. Desde o voto do «Brexit » e a vitória de Trump, a política está a vingar-se. A União treme agora ao observar cada escrutínio nacional como se neles se jogasse a sua vida. Mesmo a vitória de um dos candidatos franceses em que ela investiu não a vai tranquilizar por muito tempo.
Daqui
Procuramos também em vão precedentes para uma campanha tão parasitada pela informação contínua, os casos judiciários, a incapacidade geral para se fixar a atenção por mais de vinte e quatro horas numa questão essencial. E não encontramos certamente um só caso anterior de um candidato importante à magistratura suprema indiciado por desvio de fundos públicos quando há dez anos vem afirmando que a França está falida.
O facto de o presidente cessante ter renunciado a lutar por um segundo mandato pode dissimular o ponto de partida de todas estas desregulações. O quinquénio que agora termina viu François Hollande tornar-se o chefe de Estado mais impopular da V República, e isto logo a seguir a o seu antecessor, Nicolas Sarkozy, ter sido já repudiado. Ora, o próprio presidente socialista admitiu ter «vivido cinco anos de poder relativamente absoluto». Em Junho de 2012, pela primeira vez na sua história, o PS controlava com efeito a presidência da República, o governo, a Assembleia Nacional, o Senado, 21 das 22 regiões metropolitanas, 56 dos 96 departamentos e 27 das 39 cidades com mais de 100 mil habitantes.
Hollande fez um uso tão discricionário quanto solitário deste poder. Foi ele quem decidiu o estado de emergência, que envolveu a França em vários conflitos externos, que autorizou o assassinato de simples suspeitos recorrendo a aviões teleguiados. Foi também ele quem fez modificar o Código do Trabalho, forçando a sua maioria parlamentar a uma reforma que ela recusa apoiar (recurso ao artigo 49-3 da Constituição) e para a qual nem ele nem ela haviam recebido mandato do povo. Sem esquecer a refundação do mapa das regiões francesas, que o chefe de Estado redesenhou a partir do seu gabinete no palácio presidencial.
Tudo isto coloca com acuidade a questão das instituições da V República, que Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon (A França Insubmissa) se comprometem a repensar, mas às quais François Fillon (Os Republicanos) e Emmanuel Macron se acomodam, tal como Marine Le Pen. Nenhuma outra democracia ocidental apresenta uma tal concentração de poderes entre as mãos de uma só pessoa. Para lá do perigo, bem real, de um dia se ter um chefe de Estado menos complacente do que aquele que agora termina o seu mandato, as proclamações pomposas sobre a democracia francesa, sobre a República, esbarram numa constatação que a presidência de Hollande tornou flagrante: o exercício solitário do poder fortalece a faculdade ilimitada de desrespeitar os compromissos de uma campanha que, no entanto, deveria fundar o mandato do povo soberano.
François Hollande comprometeu-se a defender a siderurgia francesa, mas homologou o encerramento das unidades de Florange; deveria ter renegociado o Pacto de Estabilidade europeu, mas desistiu de o fazer logo no primeiro dia do seu mandato; prometeu «inverter a curva do desemprego» antes do fim de 2013, mas esta prosseguiu o seu crescimento por mais três anos. Contudo, se ficou marcada nas mentes uma sensação de traição foi sem dúvida por causa de uma frase que marcou a sua campanha de 2012 e que desde então todos voltaram a ouvir mil vezes: «O meu único adversário é o mundo da finança». Ora, mal foi eleito, Hollande foi buscar como conselheiro da presidência um antigo banqueiro do Rothschild, confiando-lhe em seguida as chaves do Ministério da Economia.
A actual aceitação de que Emmanuel Macron parece beneficiar junto da opinião pública é ainda mais desconcertante porque ela pode colocar no poder supremo o digno herdeiro, mesmo que parricida, deste presidente cessante ineditamente impopular. «Emmanuel Macron, sou eu», afirmou um dia Hollande, «e ele sabe o que me deve». Macron não é certamente socialista, mas Hollande também não. Um proclama-o, o outro usa de rodeios. As palavras do primeiro viram as costas a uma tradição de esquerda que maltrata «o dinheiro» ou «a finança», mas isso corresponde às convicções que o segundo exprimiu logo em 1985 na obra La Gauche bouge, que teve também como autores o actual ministro da Defesa e o secretário-geral da presidência.
Neste livro encontrava-se já a ideia, cara a Macron, mesmo que nele ela esteja escondida debaixo de um monte de palavras lanudas e ocas, de uma nova aliança social entre as classes médias cultivadas e o patronato liberal, cimentadas pela vontade conjunta de estar presente num mercado mundial. «Empresariado» em vez de «assistanato», lucro em vez de rendimento, reformistas e modernistas contra extremistas e passadistas, recusa da nostalgia «dos cameleiros e dos aguadeiros»: ouvir Macron é voltar a ouvir o que Bill Clinton já dizia desde 1990, e Tony Blair e Gerhard Schröder alguns anos mais tarde. E segui-lo significaria avançar ainda mais descaradamente do que com Hollande na «terceira via» do progressismo liberal. A via que enganou o Partido Democrata americano e a social-democracia europeia, deixando-os no abismo em que jazem hoje.
«O projecto de Emmanuel Macron é uma escada para a Frente Nacional»
«Globalistas» e «partido de Bruxelas» contra «patriotas»: Marine Le Pen regozijará se o confronto político se resumir a esta dialéctica. Richard Ferrand, deputado do PS e pilar da campanha de Macron, parece antecipar-se aos desejos da candidata: «De um lado», considera ele, «há os neonacionalistas reaccionários e identitários; e do outro há os progressistas que pensam que a Europa é necessária». Esta estruturação do debate ideológico não é inocente. Dos dois lados, o que está em causa é submergir a questão dos interesses de classe, alimentando num caso terrores «identitários» e vituperando, no outro, pulsões «reaccionárias».
Mas, por muito que isso desagrade a todos os progressistas de mercado, os «que pensam que a Europa é necessária» estão situados em termos sociais. Os «trabalhadores destacados» que surgiram por causa de uma directiva de Bruxelas, e cujo número decuplicou nestes últimos dez anos, são mais frequentemente operários da construção civil ou trabalhadores agrícolas do que cirurgiões ou antiquários. Ora, o que «pensam» as vítimas deste dispositivo é também, e sobretudo, o produto do que elas apreendem, isto é, um dumping social que ameaça as suas condições de vida. Para elas, a Europa não se resume ao programa Erasmus ou à Ode à Alegria.
Stephen Bannon, estratego político de Donald Trump, compreendeu o quanto a direita nacionalista podia tirar partido da desclassificação social que acompanha quase sempre as celebrações da aldeia global. «O essencial daquilo em que acreditamos», explica ele, «é que somos uma nação com uma economia, e não uma economia em não sei que mercado mundial com fronteiras abertas. Os trabalhadores de todo o mundo estão fartos de serem submetidos ao partido de Davos. Há nova-iorquinos que agora se sentem mais próximos dos habitantes de Londres ou de Berlim do que dos do Kansas ou do Colorado, e partilham com os primeiros a mentalidade de uma elite que pretende ditar a todos a maneira como o mundo será governado ». Quando Emmanuel Macron, nas suas reuniões públicas consteladas por bandeiras europeias, exalta a mobilidade, reclama o «relançamento pelas margens das empresas» e se compromete a eliminar os subsídios de desemprego depois da décima recusa de uma «oferta de emprego decente», como distinguir as suas propostas dos interesses dos oligarcas do dinheiro e do saber que compõem o «partido de Davos»? Imaginam-se os danos democráticos que resultariam de um eventual frente-a-frente entre ele e Marine Le Pen, o mesmo que a comunicação social procura tornar realidade.
Há mais de vinte anos que defender o «voto útil» significa apresentar os dois partidos dominantes como muralhas contra uma extrema-direita cujo crescimento foi favorecido pelas suas escolhas sucessivas e concordantes. «Hoje», considera Benoît Hamon, «o projecto de Emmanuel Macron é uma escada para a Frente Nacional». Mas, reciprocamente, a força da Frente Nacional fortalece o monopólio do poder dos seus adversários, socialistas incluídos. Logo em 1981, François Miterrand calculou que uma extrema-direita forte obrigaria a direita a fazer uma aliança com ela, correndo o risco de, ao fazê-lo, se tornar inelegível. A manobra foi perturbada em Abril de 2002, quando Jean-Marie Le Pen enfrentou Jacques Chirac na segunda volta das eleições presidenciais. Desde então, a direita já só tem de ultrapassar o PS em qualquer escrutínio, nacional ou local, para depressa se transformar, aos olhos de quase toda a esquerda, no arcanjo da democracia, da cultura, da República.
Instituições monárquicas que permitem todas as patifarias, todas as negações; uma vida política aferrolhada pelo medo do pior; órgãos de comunicação social que se acomodam a umas ao mesmo tempo que se alimentam das outras; e depois… há ainda a Europa. A maior parte das políticas económicas e financeiras de França estão-lhe estritamente subordinadas, o que não impede que o essencial da campanha se tenha desenrolado como se o próximo presidente fosse poder agir com total liberdade.
Uma vitória de Marine Le Pen pode ditar o fim da União Europeia – ela preveniu: «Não serei a vice-chanceler de Merkel». No caso de um dos favoritos a ser eleito – e favorito de Angela Merkel –, isto é, Fillon ou Macron, se instalarem na presidência, a continuidade com os presidentes que eles respectivamente serviram estará, em contrapartida, assegurada, a coerência com as orientações da Comissão Europeia estará preservada e a hegemonia alemã e o ordoliberalismo estarão confirmados, funcionando uma como guardiã atenta da outra. A questão será diferente com Hamon ou Mélenchon. Pondo de lado as tentações federalistas do primeiro e o seu apoio à ideia de uma defesa europeia, os seus objectivos podem parecer próximos. Mas os meios para os atingirem diferem completamente, a tal ponto que as suas duas candidaturas fazem concorrência uma à outra e fazem ambos correr o risco da eliminação.
Com Benoît Hamon é difícil escapar a uma sensação de já visto. Procurando conciliar o apego à União Europeia com o desejo de romper com a austeridade para levar a cabo uma política mais favorável ao emprego e ao ambiente, e menos impiedosa com Estados como a Grécia, esmagada pelo endividamento, o candidato socialista tem de se convencer de que a orientação a que aspira é possível, incluindo no quadro das instituições actuais; que é concebível «atingir resultados tangíveis sem virar as costas a toda a Europa». Hamon funda a sua esperança numa recuperação de influência da esquerda europeia, em particular alemã. Ora, essa é quase exactamente a hipótese que Hollande deixou antever há cinco anos. A 12 de Março de 2012, comprometendo-se «solenemente» perante os seus camaradas europeus reunidos em Paris a «renegociar o Tratado Orçamental» feito por Merkel e Sarkozy, Hollande afirmou: «Eu não estou sozinho porque há na Europa o movimento progressista. Eu não estarei sozinho porque vai haver o voto do povo francês que me vai dar mandato». Cécile Duflot, que se tornou ministra da Habitação de Hollande, recorda-nos o que aconteceu a seguir: «Toda a gente esperava que [Hollande] iniciasse um braço-de-ferro com Angela Merkel. (…) Íamos finalmente virar as costas ao Merkozy. (…) Por muito liberal e rígido que ele fosse, o italiano Mario Monti contava com a França para inverter a tendência. O muito conservador Mariano Rajoy via na eleição de François Hollande a possibilidade de aliviar o garrote que estrangulava a Espanha. Quanto à Grécia e a Portugal estavam prontos para seguir qualquer salvador para evitar a ruína». Sabemos o que aconteceu em seguida.
Uma União Europeia que treme a cada eleição nacional
No fundo, não aconteceu nada que não tivesse já sucedido quinze anos antes. Nessa altura, Hollande dirigia o PS e Lionel Jospin o governo. Em jeito de prelúdio à moeda única, acabava de ser negociado um «pacto de estabilidade e crescimento» que previa um conjunto de medidas de disciplina orçamental, entre as quais multas em casos de défices excessivos. Então líder da oposição, Jospin não deixou de denunciar o pacto como um «super-Maastricht», «concedido de forma absurda aos alemães». Apesar disso, quando se tornou primeiro-ministro em Junho de 1997, Jospin aceitou todos os termos do Conselho Europeu de Amesterdão, alguns dias mais tarde. Segundo Pierre Moscovici, então ministro dos Negócios Estrangeiros, como prémio pelo seu assentimento terá conseguido «a primeira resolução de um Conselho Europeu consagrada ao crescimento e ao emprego». Uma resolução fulminante, como todos puderam desde então constatar.
Hamon e Mélenchon pretendem, por sua vez, renegociar os tratados europeus. Mas será que se dotam dos meios necessários para o fazer? Hamon não põe em causa a questão da independência do Banco Central Europeu, mas espera «conseguir mudanças nos seus estatutos». Aceita a regra dos 3% de défice público, mas «deseja políticas de relançamento» compatíveis com as suas ambições ecologistas. Propõe «a constituição de uma assembleia democrática da zona euro», mas esclarece de imediato o seguinte: «Aceitarei que discutamos o assunto, como é evidente. Não irei para Berlim ou para outro sítio a dizer: “É assim ou nada feito”, isso não tem sentido».
Algumas destas reformas exigem o acordo unânime dos membros da União e nenhuma delas pode hoje contar com o aval de Berlim. Benoît Hamon espera, por isso, modificar a situação graças a um «arco de aliança das esquerdas europeias». E recusa o precedente pouco encorajante de 2012: «Creio que os alemães são mais abertos hoje do que quando Hollande chegou ao poder». O medo da fragmentação da União Europeia, de um lado, e a perspectiva de uma alternância política na Alemanha, do outro, teriam voltado a baralhar as cartas em seu benefício. «Sou do partido da esperança», admite ele, contudo.
Já a esperança de Mélenchon registou mudanças desde 2012. Uma vez que «não é possível qualquer política progressista» na União tal como ela existe, na ausência de uma «saída concertada dos tratados europeus » ou da sua refundação (plano A), não exclui já uma «saída unilateral» (plano B). Como não acredita muito num crescimento próximo e simultâneo das forças de esquerda, que nos próximos anos terão mais tendência para o refluxo, a França, segunda potência da União, torna-se a seu ver a «alavanca da batalha europeia». Jacques Généreux, co-director da redacção do programa presidencial do candidato, resume deste modo a equação: «A saída imposta da França significaria o fim do euro e o fim da União Europeia, muito simplesmente. Ninguém tem interesse em correr este risco. Sobretudo a Alemanha». Em consequência, ao mesmo tempo que recusa vergar-se às regras europeias que constrangem as suas prioridades económicas, «a França pode, sem receios, e se desejar fazê-lo, ficar no euro por quanto tempo quiser».
A União Europeia tornou-se indiferente às escolhas democráticas dos seus povos, certa de que as orientações fundamentais dos Estados-membros estavam aferrolhadas por tratados. Desde o voto do «Brexit » e a vitória de Trump, a política está a vingar-se. A União treme agora ao observar cada escrutínio nacional como se neles se jogasse a sua vida. Mesmo a vitória de um dos candidatos franceses em que ela investiu não a vai tranquilizar por muito tempo.
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