Sei que durante muito tempo sentia medo. Até à noite em que acordei ao som do tiro de caçadeira. Na rua, e em frente ao portão de ferro, escrito a tinta branca e letras grandes, ameaçavam o meu avô: “Porco comunista, vais morrer”
Depois de almoçar deitava-me no colchão duro da cama de ferro e lia. E foi naquele pátio de gente honrada que um livro me marcou. A Cabana do PaiTomás, de Harriet Beecher Stowe. Tal era a brutalidade do patrão e o sofrimento do escravo, que várias vezes soluçava até que desisti. Nunca consegui terminar as 170 páginas. Foi uma etapa da minha infância. Talvez a linha de partida da minha consciência.
Comecei a interrogar a vida. Porque havia pobres e ricos. Porque não éramos todos felizes. E se o meu pai me ajudava a compreender melhor o mundo, Jorge Amado, com Os Capitães da Areia, colocou-me na estrada que ainda hoje acredito que é a que nos leva ao melhor destino. Ávido, comia as palavras de Pedro Bala e Gato. Depressa terminei. E no mesmo dia voltei à página 1. Até ao fim. Novamente.
O Gamelas era um homem forte. Guarda-redes de andebol. Trabalhador. Um amigo. Naquele dia de sol, foi ele que me fritou o bife, as batatas fritas e o ovo estrelado. Foi ele que me levou à praia. E foi ele também que um dia me salvou de eu morrer afogado. Eu não sabia da minha mãe nem do meu pai. Mas a vida continuava feliz no pátio. Só aos amigos se confiam os filhos. Chegou a noite e a minha mãe e o meu pai continuavam sem aparecer. Chegou o meu avô. Levou-me. Sem grandes palavras. Soube depois que a antiga vivenda de um industrial, que admirava Álvaro Cunhal e que a alugara ao Partido, tinha sido atacada, apedrejada e incendiada. A minha mãe e o meu pai estavam lá. Na vivenda.
Colado ao vidro de trás da carrinha do meu avô, descemos a avenida muito devagar. A bonita vivenda de azulejos únicos e candeeiros de loiça estava quase toda destruída. O passeio desapareceu. Arrancado. As pedras foram lançadas contra as janelas e paredes. As janelas desapareceram. As paredes estavam todas picadas da força das pedras. A mancha negra do cocktail Molotov deixava imaginar o pior. Continuei sem saber da minha mãe e do meu pai.
Agosto de 2017. Num colchão melhor mas numa cama de ferro, combato o calor da serra algarvia. Deixo-me levar pela escrita de Miguel Carvalho em QuandoPortugal Ardeu. Passaram 42 anos. Para mim, não. Estou novamente na carrinha do meu avô a descer a avenida. E Miguel Carvalho leva-me a descobrir outras avenidas. Avenidas e quelhos que eu desconhecia. Todo o terror da direita portuguesa. Os atentados. Os assassinatos. Os negócios. As mentiras. As bombas. Os tiros. A CIA. A impunidade. O branqueamento. Sinto o meu pai e a minha mãe. Tento imaginar as pedradas. A raiva que vinha de fora e a fibra que vinha de dentro. As cabeças partidas. O carro que incendiaram. O soldado que morreu. Já não me lembro como foi o nosso reencontro depois de descer a avenida. Pouco importa. Sei que durante muito tempo sentia medo. Até à noite em que acordei ao som do tiro de caçadeira. Na rua, e em frente ao portão de ferro, escrito a tinta branca e letras grandes, ameaçavam o meu avô: “Porco comunista, vais morrer.”
Tinha oito anos. Percorri a estrada. Sem medo. Fui crescendo. O pátio desapareceu. A vivenda continua na avenida. Carrego o fardo das interrogações. Podia ter sido colega do Milhazes em Moscovo, dirigente, deputado ou outra coisa qualquer. Nunca quis nada. Só um mundo para todos. Mas não existe. Um mundo para todos. Há que continuar pela estrada.
No dia dos meus 50 anos recebi um abraço e um embrulho. Desembrulho e o papel rasgado faz antever O Fim do Homem Soviético, de Svetlana Aleksievitch. Está desde então na minha mesa-de-cabeceira. Um ano. O tempo que o estou a ler. Devagar. Rouba o sono. E ao lado, Forte de Peniche-Memória, Resistência e Luta. Devagar. Faz chorar. Fico com insónias.
A estrada continua.
Adriano Miranda
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