quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

"O Orçamento, o presente e o futuro" - Sandra Monteiro


Aprovado o terceiro Orçamento do Estado da responsabilidade da solução governativa que se propôs reverter, em Portugal, as medidas de austeridade mais regressivas e mais recessivas impostas pelo neoliberalismo nacional e internacional, é tempo de olhar para as escolhas políticas que têm sido feitas numa dupla dimensão: que presente permitem elas resgatar e que futuro podem preparar?

O presente continua a ser marcado por uma importante recuperação de rendimentos para a maioria, tanto eliminando cortes, sobretaxas e contribuições extraordinárias sobre salários e pensões, como reforçando prestações sociais e aliviando a fiscalidade. Abrangendo trabalhadores da funções pública e do privado, activos e inactivos, pensionistas e desempregados ou portadores de deficiência, as medidas adoptadas têm feito uma escolha: começam por devolver rendimentos e mínimos de dignidade aos segmentos da população mais fragilizada. Fazer política é fazer escolhas, e isso implica hierarquizar quem serão os seus beneficiários, quem ficará na mesma, quem será prejudicado.

Do descongelamento de carreiras na função pública à reposição dos cortes feitos nas pensões, passando pela maior abrangência do abono de família ou pela redução do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) nos escalões mais baixos de rendimentos, o Orçamento contraria a brutal compressão social do anterior governo. Particularmente simbólica das medidas tomadas nesse período, e agora finalmente abandonada, foi a penalização do subsídio de desemprego ao fim de seis meses com um corte de 10%. Depois de ter significado um corte estimado em 267 milhões de euros, com incidência sobre 453 mil pessoas, adquire agora outro simbolismo: além dos rendimentos que permite recuperar, encerra um enorme potencial de compreensão do elo que liga os mecanismos de protecção social e as evoluções que ocorrem no mundo do trabalho.

Com efeito, ao contrário do que os neoliberais insistem em afirmar, o fenómeno social do desemprego não é redutível a qualquer comportamento individual de motivação para procurar emprego. O desemprego – e por sua via o subemprego, os salários baixos, etc. – é na realidade muito reforçado pela pressão exercida por prestações sociais baixas, ou até inexistentes, sobre quem se vê obrigado a aceitar trabalhos cada vez mais mal pagos, com maior sobrecarga horária, sem contratos dignos desse nome.

A aliança entre, por um lado, os combates sindicais e do movimento operário e, por outro, a construção de Estados sociais robustos, em particular a partir do pós-Guerra, faz com que este eixo central da emancipação – a ligação entre protecção social e qualidade do emprego – seja reivindicado pelas forças que se identificam como de esquerda. Que ele possa ser uma pedra de toque para que a actual solução de governo se debruce finalmente sobre outras dimensões da herança dos anos da Troika, a começar pela negociação colectiva, é algo que tem de se fazer mais do que desejar.

Mas os combates pela emancipação ou, se quiserem, as escolhas políticas que possam evitar a armadilha da mera gestão de crises cíclicas – e do descrédito das forças políticas de esquerda ciclicamente chamadas e arredadas do poder –, não podem viver apenas do legado de tradições bem sucedidas de conflito social, institucional e de massas. Os combates pela emancipação precisam que as forças políticas que acedem ao poder, seja a que escala for, sejam capazes de reflectir nas suas escolhas, e em todos os campos, os caminhos que podem gerar mais justiça social, mais igualdade.

Não foi ainda criado a nível internacional nenhum movimento social, nenhuma força política que esteja a conseguir impor ao projecto neoliberal e austeritário – projecto de privatização, liberalização e desregulação –, revezes da dimensão dos que foram impostos pelo movimento operário e sindical. Foram até consolidadas instituições e tratados, como a União Europeia e os acordos de «comércio livre», que cristalizam opções sem vocação nem capacidade para criar uma sociedade decente. Mas há que ser audaz na abertura de caminhos que possam criar essa sociedade decente. Hoje, tendo em conta as características centrais do projecto neoliberal e austeritário, isso implica, para usar a feliz formulação do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, compreender que o que está em causa «não é privatizar, é investir; não é liberalizar, é proteger; não é desregular, é inovar».

Quando se compreende a natureza do neoliberalismo e das suas instituições, não é difícil observar as engenharias que ele engendra, tanto para operar uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital, como para utilizar os Estados e as políticas públicas para organizar essa transferência. A corrosão do Estado social e da protecção social, a degradação dos serviços públicos para favorecer negócios privados, e a compressão dos rendimentos e das condições de trabalho como formas de garantir rendas e lucros para os accionistas fazem parte de um mesmo sistema e alimentam-se umas às outras. Desistir de fazer escolhas orientadas para a justiça e a igualdade em qualquer destas áreas enfraquece a capacidade de actuar sobre todas as outras.

Vem isto a propósito daquilo que, na leitura mais benigna, poderá ser descrito como um adiamento da proposta de criação de uma contribuição de solidariedade sobre os produtores de energias renováveis. Como é sabido, as condições da privatização da EDP e da REN, que há anos o Tribunal de Contas alerta terem sido feitas em condições pouco transparentes e sem acautelar conflitos de interesses entre os privados e o Estado, iniciaram um processo de elevada subsidiação pública da electricidade das renováveis, ao mesmo tempo que é paga a preços escandalosos pelos consumidores. Configurando um caso de rendas excessivas, nada justifica a manutenção dessas condições de excepção. A criação de uma sobretaxa viria apenas mitigá-las. Nenhuma preocupação ecológica pode justificar este privilégio, pois não é um caso em que só a subsidiação asseguraria a concretização do bem comum (neste caso, a protecção do ambiente). Ela apenas garante lucros estratosféricos, e quase sem riscos.

Entendeu o governo que havia que estudar melhor o desenho da medida e as consequências que ela poderia ter sobre potenciais investimentos na economia, em particular na compra de dívida portuguesa, e sobre a eventual litigância na justiça. Será de acompanhar com o maior interesse a evolução dessa reflexão e desse estudo. Será mesmo um acto fundamental de cidadania. Porque o que dele resultar será decisivo para se compreender se os Estados e os poderes políticos nacionais têm (ou não) capacidade para defender os seus povos para lá do simples apagar de fogos a seguir à fase aguda de cada crise.

Isto é, será um laboratório muito útil para se concluir se é possível afrontar o parasitismo rentista de empresas transnacionais sobre os Estados nacionais, mesmo em sectores tão estratégicos para a economia como a energia. Será muito útil também para se compreender as relações que este rentismo estabelece com toda a arquitectura de judicialização da política e de transformação da crise financeira em crises de dívida pública. Muito útil, por fim, para se compreender que respostas dará a União Europeia a Estados, como o português, que para saírem desta armadilha da dívida e do rentismo, tenham de colocar em cima da mesa propostas robustas de reestruturação da dívida pública. É que as escolhas do presente preparam sempre o futuro.

Sem comentários: