Este artigo, da autoria da jornalista São José Almeida, foi publicado no jornal Público de 27 de Outubro. É, em minha opinião, uma peça exemplar.
No dia 18 de Outubro, Lisboa viveu a maior manifestação dos últimos 20 anos. Um total de 200 mil pessoas - uma avaliação em que concordaram organizadores e polícias - protestaram na rua contra a política económica e social do Governo de José Sócrates. A manifestação protestava também, segundo então declarou o líder da CGTP, Carvalho da Silva, "contra o aumento da pobreza e das desigualdades, a quebra de salários e da coesão social, o aumento do desemprego e da precaridade", noticiou o PÚBLICO.
A maior manifestação dos últimos 20 anos passou quase despercebida na comunicação social, como se se tratasse de um facto normal, vulgar. É certo que a assinatura do Tratado de Lisboa, que muda a organização institucional e política da União Europeia, dominou o noticiário. Mas é significativo que a mesma comunicação social que exultou a obtenção de acordo sobre o Tratado Constitucional - não se questiona aqui a importância deste facto e o quanto é decisivo para a progressão da União Europeia como comunidade política com um papel a desempenhar na cena política nternacional - praticamente tenha passado ao lado da importância e significado da manifestação que se realizou em Lisboa.
E é significativo porque, embora a organização da manifestação tenha vincado que esta não protestava contra o Tratado de Lisboa, o que é facto é que os assuntos não estão assim tão desligados - ou seja, as políticas económicas e sociais praticadas por José Sócrates em Portugal mais não são do que o resultado prático das orientações económicas e sociais que emanam da direcção política da União Europeia e do predomínio a nível central de orientações neoliberais de gestão da sociedade e da economia. Aliás, na mesma semana, realizaram-se em outras capitais europeias manifestações em que as políticas económicas e sociais dos respectivos governos foram contestadas, sendo o caso mais relevante um milhão de manifestantes em Roma.
Deveria ser motivo de reflexão que não seja dado o relevo devido e não sejam debatidas as razões pelas quais duzentos mil portugueses decidem sair à rua em protesto contra a política do Governo. Uma política que mais não é do que a expressão institucional da nova revolução liberal em curso, fruto dessa nova forma de luta de classes invertida, em que as elites gestoras da sociedade, as novas classes dominantes, retiraram direitos aos que trabalham. E que tem como objectivo a desconstrução do Estado social e do modelo social europeu - isto é, alterar os critérios de redistribuição de riqueza que estavam estabelecidos nas democracias europeias desde a reconstrução Europeia posterior à Segunda Guerra, fixando como nova orientação para o trabalho a precaridade, num retrocesso histórico a relações laborais sem vínculos estáveis.
Ora, essa investida de um grupo dominante sobre os direitos da maioria da população provoca reacção. É, por assim dizer, dos livros, que haja protestos perante o avanço da retirada de direitos e perante a imposição de novas regras de relacionamento social e económico. É, aliás, perceptível que a revolta e o protesto dos que estão a ser espoliados nos seus direitos sociais seja esperada pelo poder vigente. E não só sob a forma presente de manifestações legais e democraticamente enquadradas. Não foi por acaso que Cavaco Silva, no seu primeiro discurso de 25 de Abril como Presidente da República, deixou a advertência de que o poder político tivesse cuidado com o clima de explosão social que poderia disparar com o avanço da retirada de direitos e com a desregulação das relações laborais, tendo então lançado a ideia dos seus Roteiros para a Inclusão.
A um outro nível e de outra forma, o clima de explosão e revolta social que pode advir da continuação da retirada de direitos também preocupa o Governo, do mesmo modo que preocupa todos os governos europeus. E não será por geração espontânea, nem apenas por causa do terrorismo, que são introduzidas no espaço da União Europeia novas políticas securitárias e um novo espírito policial, que entra até em contradição com a defesa dos direitos, das liberdades e das garantias típicas das democracias liberais do século XX.
Daí que não seja disparatado reflectir sobre a real dimensão e as eventuais consequências para a democracia de uma proposta feita pelo actual ministro da Administração Interna, Rui Pereira, a semana passada na Assembleia da República, de que poderia fazer sentido rever a Lei do Direito de Reunião, de 29 de Agosto de 1974.
Para além do contraste que é ver Rui Pereira a fazer declarações deste tipo - será que o Rui Pereira ministro é o mesmo Rui Pereira penalista? Ou um sósia? -, as declarações do ministro poderão não ser alheias ao temor de um clima cada vez mais explosivo a nível social. Temor que levou o Governo a aproveitar a discussão provocada pela ida da polícia a um sindicato antes de uma manifestação na Covilhã para cavalgar numa mudança da lei que rege o direito à manifestação.
Ainda que ninguém imagine sequer que o Governo queira proibir manifestações, da leitura das posições oficiais e do relatório do inquérito ao caso da Covilhã ressalta todo um espírito proibicionista, exposto na conclusão de que é preciso regulamentar, ao nível da polícia, os procedimentos a ter perante uma manifestação. A questão é a de saber até que ponto as ânsias regulmentares podem invadir também uma nova lei e esta vir a espartilhar o direito à liberdade que é vital às democracias, no caso o direito à liberdade de manifestação - ou seja, até que ponto tal alteração na lei pode ter contornos autoritários e que implicações tal atitude terá na democracia em Portugal. É também esse temor, é essa ameaça que devia obrigar a sociedade portuguesa a discutir as razões por que foi quase omitida a importância da manifestação de dia 18.
Fotos: site da CGTP-IN
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