quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Afinal, quem é "maricas"?


O Partido Socialista decidiu-se hoje pela disciplina de voto na votação relativa à legislação sobre o casamento entre homossexuais. Para o PS este não é um tema prioritário e irá votar contra. Também, verdade seja dita, ninguém pediu ao PS que o fosse. Trata-se apenas de uma oportunidade para acabar com a discriminação existente na nossa sociedade nesta matéria. O projecto não é do Grupo Parlamentar do PS. Contudo, a sua Juventude tem sido uma das grandes defensores desta legislação.

A propósito deste problema, publico o artigo no jornal Público de hoje de Miguel Vale de Almeida, Antropólogo e activista dos direitos LGBT, como assina. Um artigo em que revejo as minhas posições sobre esta matéria:

Quem propõe soluções legais específicas para gays e lésbicas, em vez do casamento, está a propor um regime de apartheid:

No dia 11 de Fevereiro de 2006 publiquei neste mesmo jornal um artigo intitulado "E se ganhássemos todos?". Passaram dois anos e no dia 10 de Outubro de 2008 o PS será confrontado com o desafio da votação nas propostas de alteração do Código Civil apresentadas pelo BE e pel'Os Verdes. Nestes dois anos, o PS não deu nenhum passo no sentido de estabelecer a igualdade no acesso ao casamento civil. Nestes dois anos tornou-se evidente, graças ao exemplo espanhol, que essa igualdade é não só uma questão básica de direitos e democracia, como torna a sociedade mais aberta, tolerante e dinâmica. A JS percebeu isso e ofereceu de bandeja ao PS a oportunidade de tomar a iniciativa legislativa nesta matéria. De pouco parece ter servido. O máximo que se ouviu do PS foram platitudes sobre o adiamento do assunto para a próxima legislatura, sendo que a sociedade não faz obviamente ideia de quais serão os resultados eleitorais. Finalmente, Sócrates colocou uma pedra sobre o assunto: "Não está na agenda do PS".

Desabafava há dias com amigos sobre como "já não há paciência" para continuar a argumentar sobre este assunto. Afinal de contas, a igualdade e a não-discriminação não deveriam ser as coisas mais simples de entender numa sociedade moderna e democrática, na Europa e no século XXI? Uma sociedade que, para mais, convive com o exemplo espanhol ao lado? Os argumentos de há dois anos mantêm-se iguais, como se manteriam caso estivéssemos a discutir a igualdade entre negros e brancos ou o direito das mulheres ao voto. Dizia eu em 2006 que, uma vez instituída a igualdade no Código Civil (processo que não custa nada, é simples e não impede a resolução de outros problemas do país), a maioria das pessoas continuará a poder optar, como hoje, entre casar ou viver em união de facto. Todas essas pessoas continuarão a poder escolher a sua forma de vida em conjunto, os direitos e deveres associados às diferentes opções, e o prestígio e valor simbólico que os seus valores a elas associem. A única diferença é que milhares dos seus concidadãos (iguais em tudo o resto, do pagamento de impostos à obediência às leis) passarão também a poder usufruir das mesmas escolhas. E nem uma ínfima porção dos direitos da maioria será posta em causa.

Garantir a igualdade no acesso ao casamento civil é aplicar a Constituição, única na Europa a proibir a discriminação com base na orientação sexual. Esta proibição complementou as outras, com base no género ou na "raça", por exemplo. Note-se, porém, que a discriminação dos gays e lésbicas é sentida no mais íntimo das pessoas; por ser sexual, esta forma de discriminação ultrapassa-se, em grande medida, justamente no plano dos ordenamentos conjugais e familiares. Note-se, ainda, que a democracia não é a ditadura da maioria, sendo a qualidade do regime medida justamente pela sua capacidade de defender as minorias. É por isso que, para alterar a situação actual de desigualdade, não é preciso esperar por uma "mudança de mentalidades" nem promover um "debate" prévio (o qual, de qualquer modo, tem sido fortíssimo). E muito menos optar pela via absurda e cruel de um referendo sobre direitos de uma minoria.

A discriminação dos gays e lésbicas face ao casamento é mesmo a última discriminação consagrada pela lei portuguesa. Pena é que, entre nós, dado o conservadorismo aflito e tantas vezes marialva da nossa classe política (nomeadamente à esquerda), tenha que ser muitas vezes a esquerda mais radical a defender aquilo que, afinal, é uma questão de puro e simples liberalismo. Há anos que defendo publicamente a alteração da lei. Tenho-o feito assumindo-me sempre como homossexual. Também na minha actividade de investigação trabalhei sobre este assunto, defendendo o carácter dinâmico da vida social e recusando argumentos falsamente antropológicos sobre a "naturalidade" do casamento e da família ditos tradicionais - na realidade argumentos sobre a naturalidade da homofobia. Estive em Espanha em 2005 fazendo pesquisa sobre o debate público em torno da alteração do Código Civil espanhol. Tive a oportunidade de conhecer muita gente que, pelas mais variadas razões, queria casar-se. Apesar das diferenças, uma razão era comum: toda a gente queria a possibilidade de escolher em igualdade de circunstâncias com os outros cidadãos. Escolher casar ou não. E, ao ter esta escolha, toda a gente o que queria era ser dignificada. O contrário é certamente verdadeiro: os que os detractores da igualdade querem é manter os e as homossexuais como criaturas indignas. Daí a importância do casamento. Soluções de segunda - uniões civis registadas, casamento "mas com outro nome", etc., como se fez por exemplo no Reino Unido - são, a meu ver, um insulto. Instituiriam um privilégio intolerável em democracia: só os casais de pessoas de sexo diferente poderiam usufruir do símbolo do casamento. Independentemente de gostarem dele ou não. Por tudo isto, quem propõe soluções legais específicas para gays e lésbicas está a propor um regime de apartheid.
Neste momento, a plena igualdade no acesso ao casamento civil está garantida na Noruega, na Holanda, na Bélgica, na Espanha, na África do Sul, no Canadá e nos estados de Massachusetts e Califórnia. No dia 10 de Outubro, dia da Abolição da Pena de Morte (algo de que Portugal se orgulha de ter sido pioneiro), Portugal poderia entrar para a linha da frente das democracias avançadas do mundo. Terão os socialistas coragem de conduzir o país para aí? Se é a contabilidade política que os preocupa, não precisam de engolir o sapo de votar nas propostas dos adversários políticos. Basta-lhes avançar, ainda nesta legislatura, com a proposta da "sua" Juventude Socialista.

Se não o fizerem, terá toda a legitimidade a pergunta matreira: "Afinal, quem é maricas?"

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