domingo, 11 de setembro de 2016

"As preferências mudam" - João Rodrigues


Na sua crítica ao utilitarismo, essa filosofia espontânea da economia convencional, Amartya Sen, Prémio «em memória de Alfred Nobel» de Economia, chamou a atenção para o fenómeno das preferências adaptativas, ignorado por uma abordagem de avaliação social, centrada no somatório das preferências individuais: «As pessoas carenciadas tendem a acomodar-se às suas privações por causa da mera necessidade de sobrevivência e podem, como resultado, não ter a coragem de exigir qualquer mudança radical e ajustar mesmo os seus desejos e expectativas ao que, sem ambições, vêem como alcançável» [1].

As preferências adaptativas, indissociáveis das relações de poder, estão presentes nas áreas e escalas que constituem a economia política. Por exemplo, no campo da economia política internacional, a acomodação desta periferia às privações geradas pelas estruturas da integração europeia, o ajustamento das expectativas e dos desejos políticos há muito tempo em curso no nosso país, seriam uma expressão colectiva do fenómeno das preferências adaptativas.

Com todas as contradições e desigualdades, um dos países que nas últimas décadas do século XX mais convergiu com o centro transformou-se na primeira década e meia do novo século num indicador avançado do fenómeno da estagnação secular, hoje o espectro que paira sobre o centro capitalista. O investimento produtivo, em percentagem de um produto interno bruto (PIB) estagnado, caiu para metade nestes anos, ao mesmo tempo que o país acumulava uma dívida externa recorde, uma combinação sem precedentes históricos; emergiu um capitalismo financeirizado, agora em crise, sem capacidade de acumular capital, incapaz de gerar aumentos de produtividade e cada vez mais dependente de relações laborais que acentuam a exploração, alimentadas pela precariedade e pelo desemprego de massas. Este processo de divergência foi consolidado pela perda de instrumentos de política económica, a base material de uma soberania democrática. Foi o preço a pagar pela adesão a uma cada vez mais disfuncional e condicionadora moeda, o euro. Usando outro termo de Amartya Sen, que resume uma avaliação social mais ampla, o povo tem visto as suas potencialidades (capabilities) postas em causa.

Neste contexto material regressivo, tudo conspira para que se perca a tal coragem de exigir as necessárias mudanças radicais (que vão à raiz do problema), em suma, tudo conspira para uma adaptação das preferências políticas. A solução governativa apoiada pelas esquerdas pode acelerar, travar ou mesmo reverter este processo. Muito depende dos freios e contrapesos ideológicos, organizados e intransigentes, ao discurso neoliberal dominante, sobretudo nas suas declinações pretensamente europeístas, que consigamos manter e criar.

Não se trata de criar um contraponto absolutamente simétrico ao discurso do «vem aí o diabo» de Pedro Passos Coelho, que fosse construído a golpes de boas notícias conjunturais seleccionadas, muitas vezes com duvidosos mecanismos causais em termos de política pública, e de um discurso europeísta em modo de psicologia positiva, esquecendo que o eixo Bruxelas-Frankfurt é o grande obstáculo a políticas de desenvolvimento. Sem perder o optimismo da vontade, a tal ambição da mudança radical, evitando sempre adaptações nas preferências políticas que são, na realidade, outras tantas formas de alienação, passa por um apoio crítico e uma crítica apoiante a esta solução governativa.

Trata-se de responder certeiramente à pergunta política: o que é que esta solução política já fez por nós? Convocando Walter Benjamim, ela fez o que tem de ser feito em tempos trágicos: usou o travão de emergência, parando temporariamente o comboio da história nacional que se dirigia ao abismo. Não é pouco, mas o comboio nunca pára muito tempo: ou construímos outra linha, sem destino traçado, e para isso os instrumentos de política escasseiam e têm de ser forjados contra a integração europeia que nos condena, ou a marcha anterior prosseguirá com destino certo.

Basta pensar que o investimento público, de que um país estagnado carece, vai atingir este ano a percentagem do PIB mais baixa na história democrática. No fundo, as direitas sabem que a integração realmente existente está com as suas políticas.

Hoje, neste país transformado numa semicolónia e num contexto social pulverizado, as esquerdas têm de insistir politicamente na importância da nacionalidade, sabendo nós que se trata de um dispositivo cultural e institucional flexível, que em mãos certas, articulado com a questão social, foi e é um poderoso convocador da primeira pessoa do plural, de que depende a coragem para exigir a mudança e de que depende uma mutação das preferências em rebelião contra as estruturas que as condicionam – mas não aprisionam para sempre.

De forma talvez não totalmente intencional, um recente cartaz do Partido Socialista (PS) prenuncia um corte político com uma tradição de adaptação: «Defender Portugal na Europa». A «Europa» já não está connosco. E não está connosco da União Bancária ao Tratado Orçamental, passando pelo euro. Tal como o estará cada vez menos com os povos de outros países periféricos e até do centro. Em tudo o que importa na economia política, a «Europa» está mesmo contra o tal nós que deseja desenvolver o país e que sabe que a recuperação de instrumentos de política nacional contra o neoliberalismo é uma condição necessária para isso, para mudar as preferências num sentido progressista, incrementando as liberdades que temos boas razões para valorizar. Como mostram as inúmeras barreiras com que se deparam as políticas de igualdade e desenvolvimento, das metas orçamentais à dívida, essa recuperação é uma condição necessária para construir e manter instituições inclusivas, do Serviço Nacional de Saúde a prestações sociais decentes, que dão densidade material a uma primeira pessoa da plural desta forma reforçada. Esta primeira pessoa do plural também se alimenta de uma sociedade com emprego para todos, do desenvolvimento das capacidades produtivas e criativas do país.

Entretanto, esta solução governativa pode e deve servir para realimentar o hábito intelectual de pensar no interesse nacional, criando a partir dele uma nova hegemonia que reoriente as expectativas e as concretizações políticas da democracia. Aqui está uma adaptação necessária para confrontar as estruturas.

Notas

[1] Amartya Sen, O Desenvolvimento como Liberdade, Gradiva, Lisboa, 2003, p. 77.

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