Entre 2011 e 2015, era Pedro Passos Coelho primeiro-ministro, foram transferidos para offshores, algumas delas não cooperantes, quase 10 mil milhões de euros. Uma soma desta dimensão, associada à vocação destes territórios para esconderem negócios ilícitos e favorecerem a fraude e a evasão fiscais, devia ter dado origem à publicação de instrumentos estatísticos que permitissem partilhar informação relevante, defender a legalidade e impedir que o Estado fosse lesado. O então secretário de Estado para os Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, impedido pelo ex-director-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), José Azevedo Pereira, de atirar as culpas para a AT foi agora obrigado a reconhecer que a falta de publicação das estatísticas relativas a essas transferência foi uma escolha sua.
Em audição na Assembleia da República a 1 de Março acrescentou, aliás, que o fez com a preocupação de não alertar potenciais prevaricadores para melhor os poder investigar. Esta versão, mais uma de Paulo Núncio numa história que continua em grande medida por esclarecer, peca desde logo por não ser acompanhada da informação sobre que investigação se seguiu e que resultados teve. Aparentemente, nada foi feito e é por isso que continuamos a não saber se há receita fiscal por arrecadar e responsabilidades criminais por apurar. Mas esta versão coloca um outro problema, o de um uso muito selectivo das vantagens da publicitação e da transparência, como se o segredo fosse de facto a alma do «negócio de governar». Além de servir a discricionariedade de quem controla as rédeas do poder, presta-se a todos os malabarismos retóricos quando, após a exposição e censura públicas, é preciso fazer controlo de danos.
Não é ainda possível saber se estas transferências, deliberadamente escondidas, lesaram o Estado na receita fiscal ou configuram algum tipo de ilegalidade. Mas elas são muito representativas de um funcionamento sistémico em o feitio suplanta o defeito. O facto de Paulo Núncio ter, como advogado e como governante, uma carreira marcada por favorecer, até contra pareceres da Inspecção Geral das Finanças (IGF) isenções e amnistias fiscais aos dividendos de grupos económicos, ou até por criar uma «lista VIP» de contribuintes aparentemente mais útil para os VIP do que para o fisco, não pode deixar de reforçar a necessidade de investigar o que aconteceu. Mas, ao mesmo tempo, tem de se compreender o papel sistémico que é hoje desempenhado pelos paraísos fiscais, pela desregulação financeira e pela desistência por parte dos poderes de defender a justiça fiscal e o controlo dos fluxos de capitais.
Tem sido sublinhado que esta decisão de não escrutinar transferências milionárias foi particularmente chocante por ter ocorrido num período em que a administração fiscal e o governo eram implacáveis com os contribuintes mais desprotegidos. Ser fraco com os poderosos e forte com os mais fragilizados, usar de dois pesos e duas medidas, é sem dúvida uma perversidade que não teria lugar na governação de uma sociedade orientada para o bem comum. Mas esta perversidade é constitutiva do sistema económico em que vivemos. O que é chocante não é apenas que dois comportamentos antagónicos coexistam; é que eles coexistem porque se alimentam um do outro. Ou seja, não há mera justaposição (num dado momento) de comportamentos contrários para com os fracos e os fortes, há uma dependência estrutural e intrínseca entre tratar uns de uma maneira (empobrecendo-os, em maior ou menor grau) para poder libertar os recursos indispensáveis a tratar os outros da maneira contrária (enriquecendo-os, em maior ou menor grau).
A teoria económica neoliberal, a chamada trickle down economics, bem pode insistir na ideia de que, com ela, a acumulação de riqueza no topo é legítima porque permite que tal riqueza escorra até à base. Na realidade, o que esta teoria tem gerado são sociedades em que a riqueza se acumula no topo sem escorrer para baixo, tornando-as cada vez mais desiguais e injustas. Inverter os termos da construção sistémica desta desigualdade implica, por isso, regular, fiscalizar e cobrar, implica afrontar interesses habituados a passar entre as malhas de mecanismos de socialização fragilizados ou inexistentes.
Para reunir força política e social de modo a avançar neste sentido, nada pior do que esquecer tudo o que aprendemos sobre a mais recente crise. Não, a austeridade não foi um sacrifício aceite nem um «esforço solidário» que todos (ou olhando para o caso das offshores, alguns) fizemos para «ajudar o país a sair da crise». Foi um empreendimento, injusto e ineficaz, que se aproveitou de uma crise financeira e de fragilidades estruturais de alguns países para operar uma transferência brutal de rendimentos do trabalho para o capital, dos Estados para interesses privados, dos mais fracos para os mais fortes (contribuintes individuais ou países excedentários/deficitários). Foi uma operação bem mais vasta do que quaisquer transferências para paraísos fiscais, ainda que estas últimas sejam uma parte importante da primeira.
O caso da transferência dos 10 mil milhões de euros para offshores, além do perigo de ser usado para reabilitar a austeridade sacrificial («podia não ter sido tão assimetricamente distribuída», volta a ouvir-se a comentadores), serve também de porta de entrada a outros refrães neoliberais. Um deles é a repetição da pretensa insensatez de se insistir em mecanismos de controlo fiscais e de fluxos de capitais quando eles não estão generalizados pelo mundo fora. O combate à fraude e à evasão fiscais, dizem-nos os neoliberais, seria facilitado se aceitássemos que os fluxos de capitais devem ser livres (de fugir para onde não são controlados), que só as operações ilegais devem ser sancionadas (se ao menos fossem…) e que a melhor forma de os capitais deixarem de fugir para estes paraísos é pressionar os governos a adoptarem medidas de «competitividade fiscal». É o que sugere um dos directores adjuntos do Expresso, João Vieira Pereira, quando afirma que o governo deve «ter uma política fiscal mais amiga das empresas e do património de forma a desincentivar o uso legal desses mecanismos». O argumento não é diferente do usado para justificar os baixos salários e demais ataques ao mundo do trabalho: conseguir ganhos de competitividade numa economia que corre para o abismo.
Controlo de danos, reabilitação da austeridade, pressões sobre a fiscalidade para obter supostos efeitos concorrenciais (que privam os Estados de preciosa receita fiscal) é o que a direita neoliberal tem feito desde que foi revelado o caso das transferências offshores. Combater este projecto passa por fazer críticas que correspondem às expectativas da base social e política que rejeita a austeridade e apoia o actual governo. Mas passa também por não descurar, a pensar num tempo mais longo, a capacidade de influir na formação dessas mesmas expectativas, actuando sobre o campo dos futuros possíveis.
sexta-feira 3 de Março de 2017
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