sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Ai, Lisboa, Lisboa!




Ritz Club

Tinha-me mirado e remirado vezes sem conta ao espelho, na expectativa de ver reflectida a imagem que há muito interiorizara. A franja caída sobre os olhos, a tês franzida, a gola do casaco levantada mais o cigarro estrategicamente colocado ao canto da boca conferiam-me um ar suficientemente adulto de modo a ludibriar o porteiro do Ritz Club, e finalmente subir aquele lance de escada que me havia de catapultar para um mundo de fadistas, chulos e putas no que se refere ao género humano, e chouriço assado, bacalhau à brás e whisky marado no respeitante aos comes e bebes. Apesar da notória decadência o Ritz era um ex-libris de Lisboa.

Quando se galgava aquela escadaria, encontrávamos à direita o barbeiro que zelava pelo aspecto dos proxenetas que faziam bicha pró penteado, e à direita o restaurante e casa de fados, onde coabitavam as piores vozes de Lisboa e o melhor bacalhau à Brás da cidade branca. Mais um lance de escadas e abriam-se as portas do paraíso. Para quem até ali só ouvira descrições verbais daquele espaço, estar ali e apreciar ao vivo e a cores aquela inebriante atmosfera de músicos, garçons, otários e prostitutas era qualquer coisa de alucinante. Os 10$00 da entrada davam direito a duas cervejas Sagres de litro - rara embalagem para a época - que o empregado depositava na mesa de uma só vez.

Sentados estrategicamente a um canto esperávamos pelo espectáculo de palco, já que o outro que desenrolava na sala, era por nós consumido avidamente sem que dele perdêssemos pitada.

Na pista de baile entre boleros e tangos tocados pela orquestra residente, logo baptizada por nós de “Conjunto Mitra” devido à avançada idade dos seus componentes , evoluíam mulheres de mau porte dançando com embriagados provincianos de patilha, que dali a pouco num qualquer cubículo de pensão manhosa com águas correntes quentes e frias, haveriam de largar nota da grossa, a troco de céleres prazeres carnais.

Depois de terminada a série dançante e segundo o amarelecido cardápio do espectáculo, haveríamos de assistir ainda ao casal de velhotes (cujos nomes se me varreram da memória), mas que fizeram rir gerações com rápidos números de teatro revisteiro na linha dos sketches do Zéquinha e da Lélé a anteceder o momento da noite, de que vezes sem conta, ouvíramos falar e que, finalmente iríamos presenciar: o strip tease de Miss Kelly! Quando Miss Kelly pisava as tábuas do velho Ritz, todos os olhos se dirigiam para o foco de luz branca que insidia sobre as adivinhadas formas roliças que se escondiam por debaixo do longo vestido de lantejoulas cintilantes.

O pianista do “ Conjunto Mitra” acompanhado pelo contrabaixista, ilustravam o momento com acordes a propósito, enquanto Miss Kelly dirigia lânguidos olhares à assistência, ao mesmo tempo que puxava lentamente com os dentes, um a um, os dedos da luva que lhe chegava ao antebraço e que simulava atirar para a assistência. A tensão crescia à medida que esta se desfazia dos adereços com movimentos estudados e mil vezes repetidos.

Quando Miss Kelly se voltava de costas e fazia correr lentamente o fecho último, qual porta que se escancarava para a paisagem corporal pressentida. Havia na sala um instante em que a respiração ficava suspensa à espera daquele momento único, e para nós primeiro, em que um atónito olhar juvenil percorria a geografia física de uma mulher adulta, que iria marcar a passagem da idade da penugem, para o clube dos fala grossa. Depois de franqueadas as portas do Ritz, havíamos de ali passar muitas das nossas jovens vidas. Tantas, que quase nos tornámos mobília. Tantas, que assistimos ao desaparecimento do velhote comediante e ainda ao de dois músicos do “ Conjunto Mitra”. Tantas, que assistimos à ascensão e queda do mito Miss Kelly, cujo corpo sulcado pelo álcool e pelo tempo, haveria de arrastar até à exaustão pelo tabuado do velho Ritz.

Não conheço quem escreveu este texto que fui descobrir no Por aí.

Mas a venda deste imóvel, considerado património municipal, é mais um atentado à cidade. Fui ao Ritz muitas vezes. Não no tempo da Miss Kelly, mas em tempos em que estar no Ritz era ainda uma noite para não esquecer.

Será que desistimos?

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