domingo, 18 de dezembro de 2011

AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA - Resolução da Convenção de Lisboa

Estas pessoas decidiram:

CONHECER PARA AGIR E MUDAR

Salários e pensões confiscadas, trabalho adicional não pago, mais impostos sobre o trabalho e bens básicos de consumo, mais taxas sobre a utilização de serviços públicos, menos proteção no desemprego, cedência a privados de bens comuns pagos por todos — tudo justificado pela necessidade de servir a dívida pública sem falha. Dizem-nos que cortar despesa pública, aumentar impostos e taxas, degradar o nível de provisão e de qualidade dos serviços públicos para servir a dívida sem falha, é “a única alternativa”. Mas como pode ser alternativa o que não chega sequer a ser uma solução? A austeridade, o nome dado a todos os cortes e confiscos, não resolve nenhum problema, nem sequer os da dívida e do défice público. Pelo contrário: conduz ao declínio económico, à regressão social, e depois disso à bancarrota. É chegado por isso o momento de conhecer o que afinal é esta dívida, de exigir e conferir a fatura detalhada. De onde vem a dívida e porque existe? A quem deve o Estado? Que parte da dívida é ilegítima e ilegal? Que alternativas existem para resolver o problema do endividamento do Estado? Tudo isso incumbe a uma auditoria à dívida pública. Uma auditoria que se quer cidadã para ser independente, participada, democrática e transparente.

1. DA CRISE FINANCEIRA À CRISE DA DÍVIDA

1.1 O mundo vive, desde 2007, os efeitos de uma crise internacional que começou por ser financeira, e rapidamente se transformou numa crise também económica e social. A actual crise, apenas comparável à Grande Depressão, teve origem na especulação financeira e imobiliária nos EUA. Foi o resultado de um processo de desregulamentação, liberalização e privatização dos mercados financeiros, que deu origem a uma economia insustentável, assente no endividamento. Esta trajectória anunciava-se, desde há muito, desastrosa.

1.2 Numa primeira fase da crise, os Estados salvaram o sistema financeiro global através de injecções massivas de liquidez, da socialização dos prejuízos da banca e da adopção de programas de estímulo económico. O preço, porém, foi uma degradação das contas públicas, provocada, quer pelos custos dos resgates bancários, quer pela queda das receitas fiscais, quer pelo aumento da despesa, resultantes da recessão. Os maiores défices orçamentais, embora estabilizadores da economia, contribuíram para um maior endividamento público em todos os países.

1.3 Na segunda fase, a crise estendeu-se à Europa, em particular à Grécia, à Irlanda e a Portugal, primeiro, e à Espanha e Itália, depois. Vítimas de uma arquitectura monetária europeia deficiente, estas economias viveram na última década uma degradação da sua posição na economia europeia e mundial, que resultou em estagnação económica ou, quando muito, num crescimento assente em bases frágeis, só possível através do recurso ao endividamento, público e privado. A vulnerabilidade económica estrutural destes países, somada à crise financeira internacional, foi explorada pelos mercados financeiros através de uma euforia especulativa em torno da dívida pública de que se não conhecem precedentes.

1.4 A resposta a este ataque foi, incompreensivelmente, a imposição de programas de austeridade brutais a estes países, agravados pelas condições exigidas nos vários resgates financeiros da troika BCE/FMI/FEEF. A austeridade condena os países intervencionados ao aumento do desemprego, à destruição progressiva do Estado social e à recessão sem fim; conjugada com a que está a ser praticada em todos os outros da UE, produz uma depressão à escala europeia e mundial que as previsões oficiais já não ignoram.

2. ENDIVIDAMENTO E CRISE DA DÍVIDA EM PORTUGAL

2.1 Entre 2000 e 2005, verificou-se um aumento do peso da dívida pública no produto interno bruto (PIB). Até 2005, este rácio esteve sempre abaixo de 60%, o máximo permitido pelos critérios de Maastricht, estando o seu crescimento relativamente contido até 2008. O endividamento público disparou apenas na sequência da crise financeira aquando do resgate do sistema financeiro e da recessão. No entanto, o mesmo não se passou com a dívida do sector privado, cujo crescimento e internacionalização têm sido fomentados pela vaga de financeirização observada ao longo da última década.

2.2 À semelhança da Grécia, Itália e Espanha, o problema de base da situação que se vive em Portugal resulta das condições de adesão ao euro e da sua arquitectura. Não só a taxa de câmbio de entrada no euro se encontrava excessivamente apreciada, dado o receio de pressões inflacionistas, como também a própria arquitectura subjacente ao euro é bastante deficiente e protectora dos interesses dos sectores exportadores dos países do centro e do sistema financeiro privado, em detrimento dos interesses da generalidade das cidadãs e cidadãos europeus.

2.3 A resposta à crise da dívida tem consistido em sucessivos programas de austeridade. Torna-se cada vez mais claro que este tipo de resposta condena a sociedade portuguesa ao aumento do desemprego, ao desmantelamento do sector público produtivo e à destruição progressiva do Estado social, sem contudo reconduzir a dívida pública a níveis económica e socialmente sustentáveis, nem criar perspectivas de recuperação económica.

2.4 No início da intervenção da troika, a dívida pública portuguesa tinha ultrapassado os 97% do PIB. Em 2013, quando é suposto esta intervenção terminar, deverá situar-se acima de 106% do PIB desse ano. Entretanto, o nível do PIB terá regredido para valores de há quase uma década, e o desemprego situar-se-á acima dos 13%. Estas são previsões do próprio governo português. A OCDE estima uma taxa de desemprego de 14,2%. No final da intervenção da troika, Portugal terá uma dívida pública maior e estará mais pobre. Reconhecer-se-á então que a dívida pública é insustentável e que os sacrifícios foram inúteis, tendo servido apenas para agravar os problemas.

2.5 A austeridade não oferece soluções. É necessário procurar respostas por outras vias. Para isso, a questão da dívida deve ser encarada de um ponto de vista realista e compatível com a salvaguarda de valores e direitos humanos fundamentais universalmente reconhecidos, diverso do adoptado pelo governo português. Torna-se urgente a reestruturação da dívida pública liderada pelo Estado soberano, estendendo a maturidade dos empréstimos, reduzindo as suas taxas de juro, ou mesmo reduzindo o capital em dívida. Requer-se a realização de uma auditoria cidadã à dívida pública.

3. A NECESSIDADE DE UMA AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA PORTUGUESA

3.1 As cidadãs e cidadãos continuam a desconhecer a origem, a composição e os valores rigorosos da dívida pública portuguesa. A propaganda de matriz neoliberal promove a ideia de que a dívida pública se ficou a dever sobretudo aos gastos com as funções sociais do Estado. No entanto, há contratos públicos pouco escrutinados, de que resulta, a prazo, maior endividamento público. É o caso de diversas Parcerias Público-Privadas (PPP), que, como indiciam relatórios do próprio Tribunal de Contas, se têm vindo a revelar gravosas para o Estado português.

3.2 Na ausência de qualquer vontade por parte das autoridades de encarar o problema da dívida na óptica dos interesses da população portuguesa no seu conjunto, tomamos a iniciativa de iniciar um processo de auditoria cidadã à dívida pública. A auditoria deve avaliar a complexidade do problema da dívida, calcular a sua dimensão, determinar as partes da dívida que são ilegais, ilegítimas, ou insustentáveis, e exigir a sua reestruturação e redução para níveis social e economicamente sustentáveis. Esta auditoria pode levar à conclusão de que há parcelas da dívida que devem ser repudiadas.

3.3 A realização de uma auditoria cidadã que permita determinar a dimensão e complexidade do problema da dívida pública é um direito legítimo das portuguesas e dos portugueses. Está mais do que comprovado que a via da austeridade, subserviente aos mercados financeiros, não oferece soluções para nenhum problema, incluindo o do endividamento.

3.4 A austeridade, ou a estratégia de “desvalorização interna”, como é conhecida entre economistas, promete resolver de um só golpe os problemas do défice das contas públicas e das transacções com o exterior. Através de redução da provisão de serviços públicos e de aumentos de impostos e de taxas, pretende reduzir o défice público. Não ignora o efeito recessivo destas medidas, antes o considera instrumental para a redução do défice externo, já que considera que o desemprego induzido pela recessão, combinado com a retracção da protecção social aos desempregados, são os mecanismos que podem forçar a desejada redução dos salários. A redução dos salários é desejada porque é considerada como um meio para a recuperação da “competitividade” e o reequilíbrio das transacções correntes.

3.5 Esta estratégia, desenhada a régua e esquadro pelo FMI, é incapaz de produzir os resultados que promete. Quanto ao défice das contas públicas e das transacções com o exterior, ignora o risco de uma permanente derrapagem decorrente da retracção da receita fiscal criada pela recessão. Quanto ao défice externo, não tem em conta o efeito social de um desemprego massivo, nem a anulação da desvalorização pela adopção de uma estratégia semelhante na maioria dos países da UE. A estratégia da austeridade é socialmente brutal e economicamente fútil.

3.6 No entanto, além das razões económicas, há razões jurídicas e morais fundamentais que justificam esta auditoria. São legítimas as taxas de juro usurárias que decorrem de enfermidades sistémicas e de “contágios” no interior de uma zona euro mal concebida? São legítimas condições impostas por credores que protegem os interesses de alguns segmentos privados restritos, e têm custos tremendos sobre as camadas mais desprotegidas da sociedade e sobre toda a gente que que vive do seu trabalho?

3.7 Há que ter presente, acima de tudo, que a dívida pública é apenas um dos múltiplos compromissos do Estado português. Além das suas obrigações contratuais juntos dos credores, o Estado tem deveres inalienáveis para com todas as cidadãs e cidadãos, quer das gerações presentes, quer das gerações futuras. O Estado português tem de ser o garante de direitos sociais fundamentais consagrados na Constituição e no direito internacional. Fazer prevalecer os direitos dos credores sobre todos os outros é ilegítimo não só do ponto de vista moral como do ponto de vista jurídico.

4. PRINCÍPIOS FUNDADORES DA INICIATIVA PARA UMA AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA

As actividades da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública portuguesa (IAC) são regidas pelos seguintes princípios fundadores:

a) Democraticidade – A IAC procura dotar as cidadãs e os cidadãos de novos instrumentos de monitorização, fiscalização e intervenção na vida pública que reforcem a democracia. A IAC é composta e legitimada por representantes dos vários segmentos da sociedade, por se entender só assim ser possível a intensificação do debate público sobre a dívida e a emergência de soluções que permitam afastar o cenário de declínio sem fim à vista;

b) Natureza participativa – A IAC coloca as cidadãs e cidadãos no centro de um processo com influência directa na vida política portuguesa, tornando a intervenção e participação cidadã numa componente fundamental dessa vida política. Procura-se, assim, mobilizar a participação cívica para a exigência de uma deslocação na abordagem ao problema da dívida, reorientando--a para a necessidade de uma reestruturação liderada pelo Estado português que torne o serviço da dívida compatível com os direitos fundamentais da população portuguesa e a sustentabilidade financeira do Estado português;

c) Transparência – A IAC rege-se pelos princípios fundamentais da transparência e prestação de contas. A estrutura e funcionamento da IAC serão alvo de escrutínio contínuo e a iniciativa compromete-se a prestar contas públicas de todas as suas operações e decisões.

d) Controlo pelos cidadãos – A IAC é uma plataforma que tem por base um modelo de participação cidadã na tomada colectiva de decisões políticas e económicas. A IAC procura garantir que a exigência, feita à população, de suportar a maior parte dos custos da crise seja acompanhada por uma capacidade activa na sua gestão.

e) Independência – A gestão do processo de financiamento da dívida pública tem sido centralizada nas mãos de tecnocratas, gestores de dívida pública e do sector financeiro nacional e internacional, sem legitimidade democrática. Uma auditoria que procure alternativas para a resolução do problema da dívida requer um processo participativo dinamizado por uma comissão independente dos interesses financeiros e políticos instalados, plural na sua composição e tecnicamente capacitada.

5. OBJECTIVOS DA AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA PORTUGUESA E DIFICULDADES A ULTRAPASSAR

5.1 O actual contexto nacional e internacional torna evidente a urgência de um processo de auditoria controlado pelas cidadãs e cidadãos que garanta em simultâneo o rigor, a exaustão, e a transparência. A Auditoria Cidadã à Divida Pública portuguesa deverá ser:

a) Uma auditoria integral, que terá um perímetro alargado. Por dívida pública entendem-se todos os compromissos assumidos directa e indirectamente pelo sector público administrativo, nomeadamente a dívida comercial, a dívida de privados garantida e/ou assumida pelo sector público, o endividamento das empresas públicas, as condições financeiras resultantes dos contratos das Parcerias Público-Privadas, o endividamento contraído pela tutela e pelas regiões autónomas. Compete à auditoria avaliar o processo de endividamento, o enquadramento institucional desse processo e os parâmetros de transparência inerentes a todos os procedimentos. Finalmente, procurar-se-á clarificar as relações circulares entre os detentores da dívida pública, em particular a banca, o Estado e o BCE, avaliando as suas implicações sobre o leque de escolhas políticas. No âmbito de uma auditoria integral, avaliar-se-á a legalidade, a legitimidade e a sustentabilidade económica, social e ambiental da assunção desses encargos.

b) Uma auditoria instrumental, que, não constituindo um objectivo em si mesma, terá como objectivo declarar, caso as conclusões do processo o suportem, a ilegalidade, a ilegitimidade, ou a insustentabilidade de parcelas da dívida pública, entendida no seu universo mais alargado, contribuindo assim para reforçar a exigência de uma reestruturação da dívida pública que proteja os interesses das cidadãs e cidadãos da República.

c) Uma auditoria pedagógica, que, para além da sua componente política, vise contribuir efectivamente para uma melhor compreensão do problema da dívida pública, procurando oferecer uma descrição detalhada e acessível da sua composição e das principais relações de força que medeiam este processo.

d) Uma auditoria participativa, que envolva uma componente técnica e o apoio e participação de especialistas, mas cujo processo seja controlado pelas cidadãs e cidadãos. Todo o processo deverá ser definido e implementado no sentido de ter a agilidade necessária para prestar contas a qualquer pedido de informação ou reivindicação efectuado por uma cidadã ou cidadão. A legitimidade do processo emana da comunidade cidadã e é, portanto, qualitativamente diferente das auditorias efectuadas por firmas de contabilidade e auditoria com conflitos de interesses, e cujos critérios de transparência e responsabilização são insuficientes para lhes ser atribuída credibilidade. O processo de auditoria cidadã deverá criar formas eficazes de disseminação regular e frequente dos resultados da investigação.

5.2 Em nome da transparência democrática, devemos enumerar alguns dos desafios que se apresentarão e os obstáculos que condicionarão, à partida, este processo:

a) As exigências técnicas inerentes à condução de uma auditoria;

b) Os obstáculos burocráticos à requisição e obtenção de documentação administrativa;

c) A definição adequada do perímetro do Estado;

d) A substituição acelerada de credores comerciais por instâncias internacionais;

e) A resistência política e administrativa à intervenção e participação cidadã;

f) A qualificação da auditoria como processo perverso, fútil e ameaçador da estabilidade;

g) A fraca mobilização da sociedade portuguesa para um processo delicado, exaustivo e moroso.

6. COMPOSIÇÃO ORGÂNICA DA IAC E SUAS INCUMBÊNCIAS

6.1 A IAC tem como órgão principal a Comissão de Auditoria (CA), entidade que articula uma participação cidadã activa com o contributo especializado de peritos, e que se rege pelos princípios fundadores da IAC. Este órgão pode apoiar-se em grupos de trabalho, nomeadamente um Grupo Técnico (GT) e criar uma Coordenação Executiva (CE) . Em termos gerais, incumbe à CA:

a) Definir o perímetro da dívida pública a auditar mediante uma avaliação da informação disponível e suas formas de acesso;

b) Definir o horizonte temporal da auditoria a realizar;

c) Avaliar o processo de endividamento e a situação actual da dívida pública nas suas diversas componentes;

d) Avaliar a sustentabilidade social da dívida pública, considerando, nomeadamente, o trade-off entre os juros pagos com o serviço da dívida e a despesa com outras componentes sociais e ambientais do orçamento, nomeadamente a provisão pública de bens fundamentais;

e) Assegurar a informação pública ao longo de todo o processo de auditoria;

6.2 No quadro dos seus objectivos, a IAC apoiará a iniciativa local e sectorial dos cidadãos e cidadãs, orientada para o escrutínio e transparência das contas públicas.

7. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

7.1 A IAC enquadra-se dentro de um movimento internacional que tem por base a Declaração de Atenas e a Aliança Europeia de Iniciativas para Auditoria Cidadã. Nesse âmbito, irá:

a) Procurar apoio técnico junto das organizações que, à escala internacional, têm vindo a acumular conhecimento no domínio das auditorias à dívida pública e sua reestruturação;

b) Retirar todos os ensinamentos das experiências de auditoria cidadã realizadas noutros países;

c) Articular-se com processos semelhantes que decorrem noutros países no quadro da Aliança Europeia de Iniciativas para uma Auditoria Cidadã e com os movimentos subscritores da Declaração de Atenas;

d) Subscrever a Declaração de Atenas.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2011

IAC

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