Com as intervenções da troika, uma parte importante da dívida grega e portuguesa passou de mãos dos credores privados, internos e externos, para a de credores oficiais – o FMI, o BCE e os fundos da União Europeia. Para isso serviram os resgates: para transferir dívida pública tóxica do sector privado para o sector público. Quem agora o reconhece, com a mais desavergonhada candura, é o FMI no relatório sobre a Grécia que recentemente veio a público: “Uma reestruturação à partida teria sido melhor para a Grécia, apesar disto não ser aceitável pelos parceiros do euro. Uma reestruturação atrasada também criou a janela para os credores privados reduzirem a sua exposição e mudarem a dívida para as mãos de credores oficiais (FMI, BCE e instrumentos europeus). Esta mudança ocorreu numa escala significativa e limitou um bail in (resgate envolvendo os detentores de títulos de dívida)… deixando os contribuintes e os Estados com a responsabilidade de pagar”.
Compreende-se assim que, “à partida”, os banqueiros não quisessem nada com a reestruturação da dívida. “Temos de evitar a reestruturação da dívida o mais possível porque se fizermos perder dinheiro àqueles que nos emprestaram dinheiro, esses não vão voltar a emprestar outra vez”, disse José Maria Ricciardi, segundo o jornal Sol, no dia 27 de Dezembro de 2011.
E compreende-se também que a opinião agora comece a mudar. “Se até 2014 a economia não crescer, vai ser necessário reestruturar a dívida”, disse o mesmo Ricciardi em entrevista ao Jornal de Negócios na semana passada.
Não era difícil perceber o que devia ser feito em 2010 na Grécia e 2011 em Portugal — Grécia e Portugal deviam ter desencadeado uma renegociação da dívida tendente à sua reestruturação. Mas a reestruturação atempada da dívida teria feito “perder dinheiro àqueles que nos emprestaram dinheiro” e isso era inaceitável para quem condicionava e acabou por determinar as decisões políticas do momento — os bancos e os fundos de investimento.
A situação agora é outra. Agora, perante os resultados da austeridade, interessa aos banqueiros garantir a cobrança de alguma coisa antes que as vítimas da austeridade se tornem incapazes de pagar o que quer que seja. Por isso falam de reestruturação da dívida.
Será que isso significa que a renegociação da dívida e a sua reestruturação já não interessa aos povos da Grécia e de Portugal? É claro que interessa. Só a renegociação, acompanhada de uma moratória, e a reestruturação, com anulação de uma parte do valor da dívida, redução das taxas de juro e alongamento das maturidades, pode reduzir o peso dos juros na despesa pública, evitar o colapso da provisão pública de bens e serviços e libertar recursos para o investimento e a criação de emprego.
Mas a reestruturação de que Portugal e a Grécia precisam não é a dos credores. Aos credores interessa aliviar o fardo para que o “animal” continue a ser capaz de puxar a carroça. Aos povos grego e português interessa alijar a carga para caminhar em frente, sem condições impostas pelos credores.
A renegociação tendente à reestruturação da dívida de que precisamos tem de ser conduzida em nome do interesse nacional, contra o interesse dos grandes credores e salvaguardando os pequenos aforradores. O Estado português tem de tomar a iniciativa e conduzir todo o processo. Mas o Governo português, o Presidente da República e a maioria dos deputados da Assembleia da República fingem não perceber. Estão sentados à espera que os credores mandem. Em contrapartida, cresce na sociedade a compreensão da necessidade de agir.
A Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC), que desde a sua fundação em Dezembro de 2011 tem vindo a trabalhar para conhecer e dar a conhecer a dívida pública (ver o Relatório “Conhecer a dívida para sair da armadilha”), lançou, em conjunto com outras organizações, a campanha Pobreza não paga a dívida: renegociação já!
Responde esta campanha à necessidade sentida pela IAC de complementar o trabalho de estudo e análise da dívida pública, que prosseguirá, com mais debate público sobre as causas e as consequências da dívida e mobilização pela sua renegociação com a participação dos cidadãos.
A campanha envolve uma petição dirigida à Assembleia da República, instando-a a pronunciar-se pela abertura urgente de um processo de renegociação da dívida pública, pela criação de uma entidade para acompanhar a auditoria à dívida pública e o seu processo de renegociação e pela garantia de que nestes processos existe isenção de procedimentos, rigor e competência técnicas, participação cidadã qualificada e condições de exercício do direito à informação de todos os cidadãos e cidadãs.
Trata-se de fazer ouvir em S. Bento uma opinião e uma vontade que acreditamos ser maioritária na sociedade portuguesa.
É certo que quando tudo está a arder uma petição parece pouco. No entanto, com um número pouco usual de assinaturas, a petição terá força. Confrontando os membros da Assembleia da República com as suas responsabilidades, poderá acordá-los para a necessidade de não fazer o que os credores querem.
A petição pode ser subscrita online em http://pobrezanaopagaadivida.info/subscrever-peti-o.html
José Maria Castro Caldas no Público de hoje
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