quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Homenagem a Elis Regina - (17/03/1945 - 19/01/1982)




Sempre conto que, na minha imaginação, Bethânia, Gal, Gil e eu faríamos algo marcante. Dos quatro, Gal e eu éramos os mais radicalmente joãogilbertianos. E eu talvez mais do que Gal. Bethânia tinha um temperamento e um talento que a levavam para além das marcas estilísticas do "supercool" de João. Gil, por ser o que era mais capaz de apreender os acordes e as levadas de violão do mestre, sentia-se livre para cruzar a fronteira.

Gal desejava entrar cada vez mais fundo no mundo desdramatizado da bossa pura. Eu, que me julgava um observador útil, capaz apenas de contribuir com acompanhamento crítico e conversas teóricas (o que não me impedia de fazer umas musiquinhas), tinha João como paradigma e, por isso, interessava-me pelo desvelamento do ser da canção como forma. Assim, o canto e o violão dele se opunham, dentro de mim, ao samba-jazz dos grupos instrumentais (ou voco-instrumentais) que se desnvolveram no Beco das Garrafas.

Elis, cantando na TV, num videotape dos que chegavam de avião às províncias (ainda não havia televisão em rede), era a realidade brilhante do estilo que me parecia oposto ao de João.
Mas a evidência de competência, talento e desenvoltura era mais forte do que meus esquemas críticos. O facto bruto de que alguém estivesse dominando divisões complicadas das frases rítmicas e exibindo com espontânea segurança o entendimento de cada nota cantada (o modo como ela instintivamente cuidava da afinação) era em si mesmo um acontecimento que me obrigava a pôr tudo em novo patamar. Bem, tudo o que eu imaginava para meus três amigos era algo que tivesse esse poder - mas por outras vias, a patir de outros elementos, sempre nascidos da atenção a João. Assim, vi uma tensão natural entre nosso projeto e o acontecimento Elis. Tive quase um sentimento de ciúme. Sobretudo me senti com maiores responsabilidades e excitado por desafios mais altos.

Nada disso nunca se desmentiu. Depois de Elis, teríamos que fazer algo mais radical. Bethânia esteve sempre fora da questão, já que ela tinha um estilo assombrosamente desenvolvido e totalmente independente da estética da bossa nova. Mas ela mal tinha se decidido pela música; havia sonhado em ser atriz, escrevia e fazia jóias de metal. Sua voz e sua intensidade pessoal é que a puxaram para o canto, através do interesse despertado em quem a ouvia. O modo extrovertido, o tom expressionista, que contrastava com a sobriedade da bossa nova, tudo isso ela tinha em comum com Elis. Mas eram figuras opostas. Pôr as duas em comparação, dentro da cabeça, era como contrapor Sarah Vaughan a Edith Piaf. Mas o que acontecia era que, com Elis eu era levado a pensar assim, em termos mundiais, considerando figuras nascentes de nossa canção com divas do grande mundo.

Bem, o ambiente de criação de música popular no Brasil estava se diversificando. Era a época de Edu - e Nara tinha aberto o leque do repertório, saindo das salas sofisticadas e indo ao morro e ao sertão. Mas, fosse Edu, Nara ou nós, todos parecíamos treinados em ambiente de teatro, cineclubes e diretórios académicos. Elis era uma mentira que gostava de Ângela Maria e se tornara um fenómeno infantojuvenil em Porto Alegre. A evidência de seu talento chamou a atenção de produtores que sonharam em fazer dela uma nova versão de Nelly Campello, o que resultou em quatro LP's que, depois do estouro de "Arrastão", foram banidos da sua discografia oficial - não tão diferente do que aconteceu com o 78 RPM de João, gravado no início dos anos 50. Seja como for, Elis vinha do mundo da música comercial, enquanto Nara, Edu e nós vínhamos dos ambientes intelectualizados.

O Beco das Garrafas e Armando Pittigliani compuseram a Elis genial que, logo formatada por Solano Ribeiro, veio a ser aquela espantosa explosão de "musicianship" que eu vi na TV.

Todos os encontros e desencontros que tive com Elis tiveram esse histórico como pano de fundo. Rogério, seu irmão, me deu de presente os quatro LPs pré-"Arrastão", numa época em que eu, deslumbrado pelo prazer que dava assistir aos shows dessa cantora que nunca estava fora de sintonia com a música, via mais de uma vez seus espetáculos. Desde que voltei de Londres (coincidindo em parte, com o período em que ela mostrou sua versão de "cool") eu via Elis cantar exclusivamente para me sentir bem. Ela influenciou gerações de cantores, lançou multidões de autores, briguei com a "Veja" por causa do modo como essa revista publicou a notícia da sua morte (briga que nunca mais achei jeito de desfazer), e hoje a gente sabe que a Björk a admira, que quem entende de música no mundo sabe que ela é uma das maiores que já houve. Ela me escreveu um bilhete pedindo perdão pelo que fez com "Gente". E saúdo sua memória com um amor muito pessoal, particular e cheio de conteúdos peculiares.


Caetano Veloso










Elis Regina

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